Literatura
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Ascânio Lopes
1900 não é apenas o primeiro ano do século XX. É uma aurora nova para o mundo: começa o século das máquinas e da massa-operária, o século do social. Neste ano se funda a associação internacional para proteção dos trabalhadores. E Zeppellin constrói seu primeiro dirigível. Em 1903 nasce a primeira fábrica Ford. E no ano em que nascia Ascânio Lopes (1906), Pio X condenava alguns erros anti-católicos, Clémenceau era ministro na França, reunia-se um congresso da Confederação Geral do Trabalho, esmagavam-se grevistas em Moscou, inaugurava-se o grande túnel do Simplon; Bérgson publicava "L'Évolution Créatrice".
A simples enumeração de homens e fatos, de 1906 até 1929, basta para provar que o mundo era um caldeirão fervendo. Era o anúncio doloroso do nascimento de um mundo novo. Neste panorama, Cataguases era uma cidade aberta e atenta às notícias, às modas, ao progresso, vindos, sobretudo, do Rio de Janeiro. Ascânio Lopes veio para Cataguases em 1906, com cinco meses - nascera em Ubá-. Nesse ano o Rio Pomba teve uma das maiores enchentes de sua história.
A Imprensa Oficial do Município foi criada em 1905 e sua inauguração foi em 28 de janeiro de 1906 com a publicação do primeiro número do
"Cataguases", órgão dos poderes municipais. No mesmo ano foi inaugurada a Companhia Fiação e Tecelagem, sob a direção do Coronel Joaquim Gomes de Araújo Porto e Major Maurício Eugênio Murgel; organizou-se a primeira exposição agrícola, pastoril e industrial de Cataguases. Dois anos depois, em 1908, a Companhia Força e Luz inaugurava suas atividades e na mesma época o Teatro Recreio vivia seus dias de glória.
A importância de Ascânio Lopes está em sua presença. De homem e de poeta. Na sua passagem meteórica deixou marcas de si, foi um elemento de contágio. Sua importância está em sua obra reduzidíssima pelo que representa dentro do Grupo Verde e no que a Verde representou de original e significativo no movimento modernista brasileiro. Foi um colaborador permanente da revista, não faltou em nenhum número, nem ao sexto e comemorativo de sua morte, porque nele aparecem três poemas seus, inéditos. Era um dos mais ativos na confecção da revista. Ascânio morreu novo, a meio caminho ou mais longe ainda do que poderia ter sido, se tivesse vivido.
Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu na noite de 11 de maio de 1906, na casa dos pais, Antônio Lopes Quatorzevoltas e Maria Inês Quatorzevoltas. Aos cinco meses foi trazido para Cataguases, tendo sido criado a partir daí pelos pais adotivos, o tabelião Cornélio Vieira de Freitas e Dulcelina Cruz. Foi um aluno comum, nos tempos do Ginásio do Professor Antônio Amaro, porém com algumas qualidades evidentes: vivacidade, inteligência, sensibilidade. Uma sensibilidade que prenunciava um poeta. Começou a vida acadêmica, como estudante de Direito em Belo Horizonte, aos 19 anos. Morreu em 10 de janeiro de 1929.
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Francisco Inácio Peixoto
A vida é uma grande experiência que os homens perpetuam consigo mesmo. Alguns, durante sua existência, riscam o céu como estrelas cadentes. Deixam à vista um traçado luminoso que os outros homens apontam e tomam como bússola. Até aqueles que nunca viram uma estrela cadente, pelas descrições, podem conceber a sua grandiosidade. Apesar da louçania, é efêmero como se demonstrasse que a vida por ser transitória deve ser marcante.
Francisco Inácio Peixoto, Chico Peixoto, foi uma dessas estrelas cadentes que deslizou no espaço. Nasceu quando a cidade, ainda jovem, começava a conjugar o seu rotundo desenvolvimento. Chegou ao mundo em abril de 1909. Pescou nas margens do Pomba e do Meia Pataca a inspiração: almejou ser poeta. E foi! Juntamente com alguns amigos fundou em 1927 a Revista Verde, marco do movimento literário que pretendia redescobrir o Brasil, a sua gente, sua cultura. O menino cresceu e teve que procurar outros centros para os estudos. Foi, primeiramente, para Belo Horizonte; depois para o Rio de Janeiro, capital da República, onde se formou em Direito. Mas das leis dos homens não quis saber. Retornou advogado, se fez industrial e transformou-se em educador e mecenas. Tinha dentro de si a sentença de Pitágoras: "educai as crianças e não será preciso punir os homens". Esforçou-se por dar outra feição à sua terra . Sem deixar de lado a fábrica de tecidos Irmãos Peixoto, que dirigia juntamente com seus irmãos, iniciou o esboço da "nova cidade". Primeiro era necessário um grande colégio onde pudesse ensinar. Trouxe professores, uma nova concepção pedagógica e, até, um arquiteto para projetar a escola. Assim a provinciana Cataguases viu surgir o Colégio desenhado por Oscar Niemeyer. Entendeu que para educar não bastava uma sala de aula. Fez cinema, praças e trouxe para a cidade uma mentalidade inovadora. Agora se conjugava modernidade.
A arquitetura tinha outros traços, não mais retilíneos. A arte brotava da terra correndo em rios no interior dos homens. Chico morava numa casa de feição audaciosa, também concebida pelo seu amigo arquiteto. Foi industrial, professor, diretor de colégio e poeta. Poeta e contista - e dos melhores. Publicou livros, onde sobressai o "Passaporte proibido", relatando suas impressões sobre mundo além da Cortina de Ferro. "Dona Flor", livro de contos, merece constar nas melhores coleções. Na década de oitenta ainda publicou mais dois: "Erótica Menor" e "Chamada Geral". Em janeiro de 1986 voltou ao céu. Para ele, sem dúvida, Cataguases foi um imenso caso de amor que viveu sem sobressaltos da vaidade, com a humildade dos sonhadores.
O poeta Paulo Mendes Campos escreveu um poema que merecia ser dito por/para Chico Peixoto. "Definição - O tempo não é fonte/Jorrando dois jatos d'água/De uma carranca bifronte./Não é pesado nem leve/Não é alto nem rasteiro/Não é longo nem breve./Nem tão pouco o passadiço/Suspenso entre dois vazios/Como frágil compromisso./O tempo é meu alimento/meu vestido, meu espaço/Meu olhar, meu pensamento."
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Enrique de Resende
Enrique de Resende, na verdade Henrique Vieira de Rezende, nasceu no dia 13 de agosto de 1899, na fazenda do Rochedo, em Cataguases. Era filho do jurista Afonso Henrique Vieira de Rezende e de Josefina Adelina Faria de Rezende. Fez o curso primário na casa dos pais. Estudou no Colégio Anglo-Brasileiro do Rio de Janeiro e depois fez o curso de matemática em Ouro Preto, vindo a formar-se engenheiro civil pela Faculdade de Engenharia de Juiz de Fora em 1924.
Em seu livro de estréia "Turris Eburnea", de 1923, a poética de Enrique de Resende já era moderna. Influenciado por Alphonsus de Guimaraens e a escola simbolista, em 1923 começaria uma evolução em sua arte que o levou a criar, com seus amigos Francisco Inácio Peixoto, Rosário Fusco, Ascânio Lopes, Guilhermino César, Antônio Martins Mendes, Oswaldo Abritta e Fonte Boa, a Revista Verde em 1927, o marco do movimento modernista em Cataguases.
Nas palavras do grande poeta Murilo Araújo, "Enrique de Resende, o modernista revolucionário da Verde, aprendeu antes, felizmente, o contraponto verbal em sua iniciação como simbolista. Por análogas razões os modernos que começaram nessa escola foram os que realizaram a arte mais perfeita e perdurável."
Enrique era o mais velho do grupo Verde. Engenheiro do departamento de Estradas de Rodagem e com obra publicada e muito bem aceita pela crítica especializada tornou-se a figura de referência do grupo Verde - alguns do grupo ainda eram adolescentes -, e por sua experiência, além de um dos maiores colaboradores, foi diretor da Revista.
Publicou, entre outras obras, "Poemas Cronológicos", em parceria com Rosário Fusco e Ascânio Lopes, em 1928; "Cofre de Charão", em 1933; "Retrato de Alphonsus de Guimaraens", seu trabalho mais discutido e apreciado pela crítica, em 1938; "Rosa dos Ventos", em 1957; "A Derradeira Colheita", em 1964; "Pequena História Sentimental de Cataguases", em 1969; "Estórias e Memórias", em 1971.
O falecimento de Enrique de Resende, ocorrido em 16 de setembro de 1973, causou profunda consternação em Cataguases e fora dela, inclusive entre seus companheiros da Academia Mineira de Letras, para a qual foi eleito em 1966.
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Guilhermino César
Guilhermino César, poeta, escritor, professor e ensaísta, foi um dos expoentes do Movimento Verde, vertente mineira do movimento paulista de 22. Falecido em dezembro de 1983, em Porto Alegre, cidade onde viveu por mais de meio século e onde desenvolveu suas atividades culturais, jurídicas e jornalísticas, deixou uma obra de considerável volume, tendo se tornado um dos escritores que mais contribuíram para o resgate da cultura gaúcha.
Sua estréia na Revista Verde, em 1927, revelou sua precocidade, ao lado de Rosário Fusco, Francisco Inácio Peixoto, Ascânio Lopes e Enrique de Resende, todos apelidados "ases de Cataguases", quando propunham a criação de uma autêntica poesia brasileira. Inicia-se aí sua rica bibliografia, com destaque para a obra Meia Pataca (1928). Com a dispersão do grupo, Guilhermino fixou-se no Rio Grande do Sul, onde deflagrou seu fértil processo criativo, inaugurando uma nova fase de rastreamento da cultura riograndense.
Em Porto Alegre escreveu Sul, História da Literatura do Rio Grande do Sul, O Romance Brasileiro Contemporâneo, Sistema do Imperfeito & Outros Poemas e inúmeras outras obras cujo acervo compõe uma das mais coerentes, rigorosas e dedicadas vidas à literatura. Nos últimos anos de sua vida, já debilitado pela cegueira, Guilhermino não perdeu sua veemência intelectual. Ao contrário, embrenhava-se com a mesma bravura pelo universo literário. Foi lidando com as limitações físicas que chegou a elaborar um último livro intitulado Cantos do Canto Chorado, onde reuniu num volume trabalhos inéditos e edições esgotadas.
Apesar de seu brilhantismo, de sua poesia esmerada, sua obra permanece ainda longe dos olhos do grande público, talvez por desinteresse das elites editoriais, que pensam mais a literatura como mercado, ou porque este poeta, gaúcho e Cataguases ou mineiro de Porto Alegre, tenha escapado do eixo Rio-São Paulo, longe da mídia e dos holofotes da crítica especializada.
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ROSÁRIO FUSCO de Souza Guerra, escritor e advogado, nascido em São Geraldo, em 19/7/1910. Faleceu em Cataguases em: 17/8/1977.
"Lá se foi o velho Rosário Fusco" - escrevia o cronista José Carlos Oliveira no Jornal do Brasil de 21 de agosto de 1977, quatro dias após a morte do romancista em cataguases: "um gigante voraz, andarilho infatigável que viveu (vivenciou, se preferirem) a aventura antropofágica proposta pelos modernistas. Cosmopolita, para onde quer que fosse levava um coração provinciano. Teria que terminar em Cataguases, misteriosa cidade com vocação de radioamador - dentro das casas, nos bares, na praça, na modorra da roça é apenas uma prevenção; na verdade, Cataguases está em febril contato com o mundo, é pioneira em cinema, em literatura, em arquitetura". A "Cataguases pioneira em literatura"deve muito a Rosário Fusco - ainda um menino de 17 anos e já fazendo com outros rapazes da cidade uma revista que daria o que falar na Capital de Minas, na de São Paulo, em várias outras do Brasil e até do exterior. Fusco foi o motor da Revista Verde, um vulcão que escrevia, ilustrava, diagramava, mandava (e recebia) cartas para todo mundo, mas principalmente pro modernista Mário de Andrade, descoberta e aprendizado, embora mais tarde fizesse mais o perfil do outro Andrade, o irreverente e antropofágico Oswald.
Com seis meses de idade e órfão de pai, Rosário Fusco de Souza Guerra, chega a Cataguases com a mãe, Auta, lavadeira. Estuda na Escola Maternal Nossa Senhora do Carmo, conclui o primário no Coronel Vieira e faz o secundário no Ginásio Municipal. Duro início de vida: aprendiz de latoeiro, servente de pedreiro, pintor de tabuletas, prático de farmácia, professor de desenho, bedel no Ginásio. Aos 15 anos, já colaborava no "Mercúrio", jornal dirigido por Guilhermino César, futuro companheiro na Verde, e logo em dois outros jornaizinhos, "Boina" e "Jazz Band". Com José Spíndola Santos, edita "Itinerário", e juntos fundam a livraria-editora Spíndola e Fusco.
Aos 17 anos, é um dos criadores da Verde Editora e, aos 18, publica "Poemas Cronológicos", parceria com Enrique de Resende e Ascânio Lopes, em 1928. Em 1932, muda-se para o Rio de Janeiro, onde forma-se em Direito em 1937. Romancista, funcionário federal, dramaturgo, poeta, jornalista, publicitário, radialista, critico literário, ensaísta, Secretário da Universidade do Distrito Federal e Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Muitos cargos para um homem só, mesmo um mulato enorme e da melhor qualidade como Rosário Fusco. Melhor dizer, simplesmente, profissão: escritor. Mesmo porque ele foi o primeiro escritor brasileiro a ser reconhecido como tal pelo antigo INPS. Em fins dos anos 60, ele volta a Cataguases, onde viria a morrer em 1977. Publicou vários livros: em 28, Fruta de Conde (poesia), 1943, O Agressor (reeditado depois, em 68, na Itália pela Editora Mandadori e no Brasil em 76 pela Francisco Alves). 1940, Amiel, (ensaio), O Livro do João (romance), 44, Anel de Saturno e O Viúvo, em 1949 (teatro), Carta à noiva, 54, (romance), Introdução à Experiência Estética (ensaio), em 49, Auto da Noiva (farsa), em 61 e Dia do Juízo (romance) também em 1961. Deixou dezenas de correspondências com expoentes da literatura brasileira, especialmente Mário de Andrade, dezenas de "diários" e dois romances e um livro de poesia erótica e de viagens.
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Os
Verdes de Cataguases
Uma foto rara:
Humberto Mauro (de paletó cinza, debruçado na escada) recebe os
jovens da "Verde" durante a filmagem de "Sangue
Mineiro". |
A descoberta de Cataguases
Patrícia Moran
Os escritores modernos respondem com ironia ao mundo, percebido em sua fragmentação. A unidade, a autonomia da forma, a concentração e a completude, características do impulso modernista tornaram imprecisas as distinções entre linguagem poética e linguagem cotidiana. A contradição peculiar entre a dissolução da forma e o tradicionalismo do conteúdo é aguda na literatura. O movimento modernista fez a representação teatral de um complexo silêncio, cujos significados incluem recusa E subversão e adquire em Cataguases dimensão exemplar.
A descoberta de Cataguases.
"modernos são móveis antigos e neuroses recentes"
Hugo Von Hofmannsthal - 1893.
O ano de 1927 ficou na história de Cataguases porque a vanguarda literária do Brasil olhou para a cidade, tornando sua presença obrigatória nos compêndios sobre o modernismo brasileiro. Rosário Fusco, Enrique de Resende,Francisco Inácio Peixoto, Guilhermino César e Ascânio Lopes inventaram e lideraram o movimento que ofereceu ao país a revista Verde, uma publicação modernista nascido no interior de Minas.
O pioneirismo do cinema de Humberto Mauro já fizera Cataguases figurar em publicações nacionais como a revista Cinearte. Os ases, assim chamados por Oswald e Mário de Andrade, também haviam circulado nacionalmente, pois Álvaro Moreira publicara seus poemas na revista ParaTodos. Mas Verde veio reposicionar Cataguases no cenário da arte nacional. Pela primeira vez, uma publicação do interior era palco do debate das vanguardas literárias.
Já se passaram mais de sessenta e cinco anos desde o acontecimento Verde. As crônicas, ensaios e capítulos dedicados à revista guardam o tom de furor e, ao mesmo tempo, de condescendência semelhante ao que se percebia nos modernistas das capitais culturais do país. A perplexidade diante desta revista realizada por jovens do interior, continua décadas após o fim de Verde.
Para se entender o Verde como resultado dos objetivos de um grupo, e não um evento episódico, ou acontecimento pitoresco por sua jovialidade e origem, é preciso discorrer sobre a trajetória dos futuros integrantes da revista. Quando seu processo de maturação é colocado, a revista adquire a feição de fruto de um trabalho persistente. A conquista do Brasil e dos mestres do modernismo brasileiro - em 1927 Mário de Andrade já havia publicado A Paulicéia Desvairada e Oswald Memórias Sentimentais de João Miramar - passa a ser lida na perspectiva de Cataguases, ganhando a acepção de um trabalho local.
Verde foi ainda importante para a solidificação do movimento modernista em termos nacionais: representou a conquista do interior brasileiro e o rejuvenescimento do modernismo. O movimento modernista, como um todo, foi um acontecimento artístico cosmopolita e poliglota. Um momento em que a vanguarda colocava questões tanto em termos estéticos, quanto de postura política e social. A busca do novo, a substituição do novo era a palavra de ordem. O modernismo representava o escândalo, a novidade, a pluralidade de visões de mundo.
A maneira como os ases se colocaram os aproximou das ações desenvolvidas tanto pelos vanguardas européias, quanto pelos modernistas brasileiros. Rosário Fusco, ao realizar os primeiros contatos com São Paulo visando pedir colaboração para o Verde, agiu como um adolescente de dezessete anos que era. Não teve cerimônias, usou de provação e espontaneidade, tratando Mário de Andrade e os demais poetas de São Paulo por "seus bostas". A irreverência cabia no modernismo, sendo apreciada por seus signatários brasileiros. Assim, a primeira acolhida de Verde também é fruto da empatia provocada pela carta, pois fusco teve senso de oportunidade ao enviar a carta desabusada para a pessoa certa.
Outra marca da espontaneidade e sentido de descoberta dos poetas Verdes está nos artigos da revista. Observando-se uma procura intuitiva de definições estéticas, textos ricos de impressões sem apreciação crítica. Esta características das crônicas dos ases podem ser apontadas como uma limitação de seus realizadores, mas também como uma falta e, por isso mesmo, busca de posicionamento intelectual, como um exercício literário movido pelo afã de conhecimento. Quando algum trabalho publicado recebia críticas, seu autor se avaliava, ouvia os comentários de terceiros, retratando-se publicamente em diversas ocasiões . Em suma, os ases haviam se lançado em uma aventura chamada Verde e praticavam o modernismo como uma possibilidade de descobertos, de experimentação literária sem ranços ou posturas previamente definidas. Viam com os olhos livres representando de maneira espontânea as propostas amadurecidas do modernismo.
As relações do grupo com a cidade revelam a importância estratégica de Cataguases para a constituição da Verde, pois a partir de seu surgimento e aceitação pelos modernistas de São Paulo, acirra-se o confronto entre os ases e a cidade. Assim, paradoxalmente, a cidade os auxiliava e limitava na empreitada modernista.
A procura de novidades literárias pelos jovens da revista Verde teve duas fontes principais de fomento e satisfação: o Grêmio Literário Machado de Assis e João Luiz Almeida. O Grêmio Literário era uma espécie de associação de estudantes, responsável pela realização de diversos eventos no Ginásio de Cataguases, dentre os quais destacam-se os encontros dominicais. Estes contavam com a presença maciça do corpo docente e discente, pois se tratava de uma atividade extra-escolar obrigatória. Os alunos que se recusassem a participar eram obrigados a estudar no "repouso". Diante da opção oferecida pela escola, as reuniões contavam com altíssimo quorum. O compromisso com o Grêmio, fundado pela imposição da diretoria e oficializado pela presença dos professores, foi sendo assumido pelos alunos com o passar do tempo. Todos os assuntos de seu interesse eram colocados em debate. Recortes de jornais, de revistas e livros se constituíam em matéria de discussão nestes encontros denominados por Guilhermino César de caldeirão literário. Desenvolvia-se no Grêmio o interesse pela literatura, que inflamava os jovens, levando-os a adotar posturas apaixonadas. Um fato ilustrativo do ambiente vivido no Grêmio foi uma briga resultante das discussões literárias: Camilo Soares, um dos futuros Verdes, discordava sobre a validade do abandono do parnasianismo, não aceitando as novidades defendidos por Guilhermino César e Francisco Inácio Peixoto. No intuito de provocar os colegas, Camilo Soares levou para a escola um texto de Raul Machado intitulado Agoniado Verso, no qual o autor sentenciava a morte da poesia caso os poetas insistissem no abandono da métrica clássica. A provocação surtiu efeito e Francisco Inácio Peixoto discutiu com Guilhermino César a ponto de cortarem relações. Guilhermino lembra que, por ocasião da briga, chegou a se falar em bengaladas(1). Dois anos depois, todos assinaram o Manifesto do Grupo Verde de Cataguases, publicado como anexo no terceiro número da revista.
Outra fonte propulsora e de abastecimento da curiosidade dos ases foi João Luiz Almeida, lembrado por Rosário Fusco, Francisco Inácio Peixoto, Enrique de Resende e Guilhermino César como o bibliotecário ambulante e o caixeiro viajante do modernismo cataguasense.
Cerca de três anos mais velho que os rapazes do ginásio, João Luiz estudava Direito, no Rio de Janeiro. Filho de um rico fazendeiro de café e vereador, ele se dispunha a buscar regularmente, no Rio, as encomendas feitas pelos amigos. Livros como A Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade e Casa do Gato Cinzento de Ribeiro Couto foram lidos por ocasião de seu lançamento, levados a Cataguases pelo caixeiro viajante João Luiz. Segundo Guilhermino, "os poderes do livro" rompiam com o "isolamento geográfico" de Cataguases (2).
Nesta ocasião, Rosário Fusco ainda não cursava o ginásio mas convivia regularmente com alguns estudantes. Fusco é citado por seus companheiros de revista como o principal responsável pela existência de Verde. Apesar de não ser aluno do Ginásio de Cataguases, ele soube insuflar e unir os jovens em torno da idéia de se realizar a revista. Mulato, filho de uma lavadeira, teve as portas das famílias tradicionais abertas (Peixoto, Vieira Resende, Tostes, etc) devido ao seu "magnetismo de menino prodígio". Lavando vidros nas farmácias do Tostes e do César, ajudava no sustento da casa e conhecia Guilhermino. Acompanhando sua mãe na lavagem de roupa, freqüentava a casa de Francisco Inácio Peixoto.
Interessado em discutir sua poesia, Fusco procurou Enrique de Resende, intelectual das letras respeitado naquela comunidade. Em 1925, Enrique retornava de Juiz de Fora, trazendo na bagagem seu livro Turris Ebúrnea, publicado em 1923 pela Editora Monteiro Lobato, e o diploma de bacharel em Engenharia Civil. Perante os rapazes da Verde e a comunidade local, Enrique era uma autoridade em termos literários, pois costumava redigir crônicas para o jornal O Cataguases e participar, como orador, de festividades promovidas pela oficialidade local. Ir ao seu encontro implicava a quebra de tabus e medos, significava criar uma relação pessoal com alguém de posição e de notório saber. O contato com Enrique representou uma conquista literária que abriria novas fontes de informação, tratadas pelos jovens como descobertas.
Fusco dirigiu-se à residência de Enrique, colocando sob sua porta um poema e uma carta, na qual pedia opinião sobre seus versos. Enrique surpreendeu-se com a situação, chegou a pensar que se tratava de alguma brincadeira. Saiu à procura do autor da carta, encontrando Fusco a pintar cartazes publicitários de cinema . A partir de então , passou a ter a sua casa constantemente assediada pelos demais rapazes do grupo. Uma carta de Enrique de Resende à Francisco Inácio Peixoto nos dá uma idéia do que Enrique representou naquele momento para os jovens da Verde:
"Recebi. Você ao que vejo pensou que/ eu fosse um medalhão. Fosse um/ sujeito que pelo fato de have/ publicado um livro passadista. Com epigrafe latina, assumia ares albertoliverianos em face de um novo representante da modernidade. Mas enganou-se, redondamente. Ora bolas. Que moço também eu sou. Fique sabendo que comigo não tem esse negocio de embromação não.Tá bom, tá bom. Tá ruim, tá ruim. E ninguém tem nada com isso". (3)
Realizou-se, aí, a primeira relação artística dos ases com um profissional das letras, e Enrique soube ouvir e acolher, para também ser acolhido. O encontro com este poeta de vinte e oito anos foi decisivo para a constituição do grupo Verde. As investidas isoladas, no sentido de se realizar uma publicação agora eram objetivo comum, e isso dava aos rapazes do Ginásio, a Fusco e a Enrique uma fisionomia de grupo.
Todos os integrantes da Verde já haviam redigido poemas ou crônicas no jornal de Cataguases. Guilhermino editou o Mercúrio, periódico da Associação Comercial, e publicou artigos para O Estudante, jornal do Ginásio. Rosário Fusco juntamente com o João Luiz dos livros lançou Jazz Band, tablóide que teve única edição e se auto-denominava "quinzenario moderno e mundano". Agora faltava uma publicação conjunta para unir o esforço modernista local.
A revista Verde, com detalhes verdes na capa, saiu em setembro. Seu primeiro numero foi exclusivamente mineiro contando por exemplo com a colaboração de Carlos Drumond de Andrade, Emilio Moura e Martins Mendes. Problemas de ordem financeira dificultaram a manutenção da periodicidade mensal da revista. O quinto numero da primeira fase de Verde, só foi lançado em maio, motivando uma brincadeira dos ases. Eles transformaram os detalhes verdes em vermelho alegando que a demora no lançamento da revista ocasionou seu amadurecimento. Na segunda fase foi lançado apenas um numero em homenagem a Ascânio Lopes, morto prematuramente.
As cartas enviadas a São Paulo, Rio de Janeiro, ao norte e sul do país começavam a dar retorno. Cartas,contos,crônicas, poesias e livros chegavam a Cataguases, indicando o sucesso da Verde. Os ases não dissimulavam seu furor, trocavam cartas entusiasmadas comemorando os resultados alcançados. Não imaginaram a repercussão de Verde, não contavam figurar lado a lado com seus mestres, haviam conquistado o Brasil depressa demais!
"Fiquei grogui(sic) quando soube que/ vocês aí já mantêm correspondência/ com o Mário, o Alcântara, o Milliet./etc. Mas rapaz! Que furo! Que furão!/ É o caso de se babar. (4)
O grupo de Cataguases mantinha aceso o entusiasmo juvenil. Através de seus textos presentes na revista- impressões parciais e repletos de adjetivos e juízos de valor percebe-se a imaturidade dos ases. Mas essa imaturidade literária permitiu a Verde abrigar todo e qualquer representante do modernismo.
Polêmicas e busca de definições encontravam terreno na revista, que, indiscriminadamente, acolhia Mário de Andrade, Ribeiro Couto e Godofredo Rangel. Como disse Mário:
"a Verde chamava às armas
...denunciava as investidas da idéia
modernista no país. A Verde conseguia
a um tempo centralizar e arregimentar
o movimento moderno no Brasil."(5)
Transformou-se em um fórum de debates, conquistou poetas encastelados em posições definitivas sobre o destino e objetivos do modernismo. Nas páginas de Verde escritores de todo o país pensaram o modernismo,e retribuíram a acolhida dedicando poemas aos ases, como HOMENAGEM AOS HOMENS QUE AGEM, escrito a quatro mãos por Mário e Oswald de Andrade:
Tarcila não pinta mais
com verde Paris
Pinta com Verde
Cataguases.
Os Andrades
Não escrevem mais
Com terra roxa!
Não!
Escrevem
Com tinta verde
Cataguases
Brecheret
Não esculpe mais
com pastilina
Modela o Brasil
Com Barro Verde
Cataguases
Villa Lobos
Não compõe mais
Com dissonâncias
De estravinsqui
NUNCA
Ele é a mina verde
Cataguases
Todos nós
Somos rapazes
Muito capazes
De ir ver de
Forte Verde
os ases
cataguases (6)
Mário de Andrade não poupava esforços para garantir o sucesso da revista. Pedia para seus amigos e correspondentes contribuições financeiras e artigos, auxiliava na venda da Verde, pois reconhecia o valor da revista para aquele momento do modernismo brasileiro. É importante lembrar que na década de vinte as revistas literárias uniam os modernistas de todo país. A precariedade dos meios de transporte e comunicação fez destas publicações meios de difusão e divulgação de livros e idéias. O modernismo se pensava nas revistas.
" Minas agora voltou ao modernismo. E
voltou com uma revista de.../ Cataguases.
A coisa pode ser um / pouco cômico, mas
contra a evidencia / não há resistência.
O que o Rio e São / Paulo não possuem,
uma coisa elementar e fundamental, sem o que
não é possível nem falar de um / movimento
literário qualquer: uma / "revista", essa coisa
corriqueira em toda parte e para nós aqui tão
metafísica." (7)
Cataguases e seus jovens poetas foram aplaudidos porque, na perspectiva dos modernistas dos grandes centros, traduziam o sucesso do modernismo nacional. Desde 1924 o modernismo brasileiro ganhava uma acepção nacionalista e o nacionalismo era uma palavra de ordem. A descoberta do interior mineiro, sem tradição barroca era uma novidade: Verde era a novidade.
O mérito de Verde e o aplauso incondicional recebida por seus poetas deviam-se, segundo Ribeiro Couto, a terem integrado Cataguases na realidade nacional atingível, que limitava-se às regiões ou cidades conectadas com as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. O etnocentrismo das capitais culturais do país é ironizado por Ribeiro Couto na Verde, sendo considerado uma postura anacrônica.
"A contingência das enormíssimas
distâncias criou entre nós o hábito
dandy, de uma pose um pouco Anatole
France (um pouco 1910) de/ duvidarmos
mutuamente da / existência das nossas
cidades.../ Por isso o brasileiro da rua do
Ouvidor, (principalmente o brasileiro / da rua
do Ouvidor), diante do mal / irremediável, criou esta
defensiva para / sua indiferença:
Manaus não existe./ Cuiabá não existe,
Goiás não existe."(8)
Cataguases representou o alcance nacional do movimento modernista, um indício da descentralização da produção e significou a vitória dos objetivos do modernismo. Os modernistas fizeram Verde triunfar, já que ironicamente a vitória da revista dependia de seu alcance, dependia da conquista da "realidade nacional atingível". Verde era um fenômeno nacional, os rapazes da Verde conquistaram o Brasil para os modernistas, devolvendo através da ação e intuição os frutos da reflexão dos centros da produção intelectual do Brasil.
" É que realizamos essa conquista magnífica da descentralização intelectual, hoje em contraste aberrante com outras manifestações sociais do país. Hoje a corte, o fulgor das duas cidades brasileiras de mais de um milhão não tem nenhum sentido intelectual que não seja meramente estatístico. Pelo menos quanto a literatura, única das artes que já alcançou estabilidade normal no país. O movimento modernista, pondo em relevo e sistematizando uma "cultura" nacional, exigiu da inteligência estar a par do que se passava nas numerosas Cataguases".(9)
Ascânio Lopes, o integrante de Verde que melhor sistematizou e polemizou questões em vaga na época ironizou a redescoberta do "umbigo" cotidiano do interior, daquilo que se encontra todos os dias à disposição do brasileiro, e precisou ser resgatado pelo modernismo, por uma elite intelectual, para ser descoberto. O Brasil provinciano de festas do interior, de comemorações, o país da igreja, da escola e da simplicidade espontânea, o Brasil-Cataguases. O modernismo do Manifesto Pau Brasil propunha para a poesia os fatos cotidianos. Ascânio, em tom de brincadeira, faz destes fatos matéria de sua poesia, situando a descoberta como um acontecimento corriqueiro.
Descoberta do Brasil.
Programa:
1) Foguetões.
2) Alvorada pela Banda Música 3 de maio.
3) Missa com sermão obrigatório e leilão no final para as obras da igreja.
4) Passeata do batalhão escolar e sessão cívica no grupo local.
5) À noite, na sede do Grêmio Literário Cultores das Letras, o Sr. Pacífico Montes discorrerá eruditamente sobre o acaso da descoberta.
6) Fogos de artifício. Nota: Haverá foguetes de lágrimas (10)
Se para os modernistas de São Paulo era clara a função e o papel de Cataguases para o modernismo, o mesmo não se dava com os Verdes. A tensão cordial marcava o encontro dos jovens com a cidade sinalizando, num primeiro momento, a necessidade do grupo se expandir, experimentar nacionalmente o sentimento moderno que se desenvolvia em Cataguases. Filhos bem nascidos da cidade, contavam com o apoio do jornal O Cataguases. Mas esse apoio não era incondicional, o jornal cobrava uma participação efetiva no cotidiano da Cataguases
Percebia que o grupo era diferente da comunidade: os ases evitavam dividir seus segredos literários.
"(...) Os modernistas daqui, graças a / Deus estão
isentos destes maus / companheiros.
Uma causa ainda não / compreendi. Porque
ainda não se / voltaram para o público.
Andam dentro / de casa e só de vez em quando
dão / uma espiada pela janela." (11)
Ao negar o cotidiano cataguasense, criavam um espaço de relaçao único e diferenciado. Buscavam , assim, esboçar um projeto que os aproximasse de seu alvo: o modernismo, os modernistas. Mas, ao se lançarem na revista, eles sentiram seus limites e força: a origem interiorana era o que tinham de peculiar, era isso que os fazia notórios em todo país, voltaram-se então, para Cataguases como o lugar da existência do grupo. Cataguases era redescoberta enquanto possibilidade de existência modernista.
"Então Verde começou a existir para / nós como
o nosso ninho, era onde nos / encontrávamos
bem como os nossos / amigos. Eu ia para Belo
Horizonte, / passava um mês lá e já estava doido
para voltar... nós vivíamos em duas / partes , em
três partes , eu vivia em Belo / Horizonte e
Cataguases, o Chico no / Rio e em Cataguases.
Cataguases / passou a ser para nós a nossa meta,
e a / Verde começou a crescer."(12)
Cataguases era assim um ideal, a primeira referência literária, o local a partir de onde se descobriu e conquistou o mundo. No poema Cataguases, de Ascânio Lopes, são transparentes as Cataguases do grupo. Ascânio idealiza a cidade transformando a falta de perspectiva do interior, de Cataguases, em memória ativa, em poesia. O poeta, brincando ou brigando com as palavras constrói, o mundo do desejo, e o cotidiano, o acontecimento, transforma-se em um jogo de imagens afetivas. A Cataguases lenta deixa de significar dificuldade para a aquisição de livros ou produção cultural, traduzindo um estado emocional:
CATAGUASES
Nem Belo Horizonte, colcha de retalhos
Iguais
cidade européia de ruas retas, árvores certas,
casas simétricas
Crepúsculos bonitos, sempre bonitos.
Nem Juiz de Fora. Ruído. Rumor.
Apitos, Klaxons.
Cidade inglesa de céu esfumaçado,
cheio de chaminés negras.
Nem Ouro Preto, cidade morta,
Bugres sem Rodenbach
onde passadistas continuam a tradição
das coisas que lá esquecemos
Nem Sabará cidade relíquia (...)
Não! Cataguases... Há coisa mais bela
e serena oculta nos teus flancos.
Nas tuas ruas brinca a inocência / das cidades
que nunca foram, que não são / cuidam de ser.
Não saberás, não sei, ninguém / compreenderá
jamais o que desejas,o / que serás.
Não és passado, não é futuro, não / tens idade.
Só sei que és a mais mineira das / cidades
de Minas Gerais...(...)
Vale a pena viver em H
Nem inquietude,
Nem peso inútil de recordações
Mas a confiança que nasce das coisas
que não mudam bruscas,
nem ficam eternas. (13)
Por outro lado, houve um momento em que os Verdes passaram a atacar sistematicamente Cataguases, que consideravam provinciana: previam atritos com a cidade, atitude típica das vanguardas nacional e européia. Estas contradições eram inerentes ao processo vivido naquele momento, imagens do quadro de conflitos entre os Verdes e as cataguases possíveis: a cidade ideal e a cotidiana, a desejada e a vivida, a formadora e a limitadora.
Os ases lançaram a revista, editaram livros, redigiram crônicas e poesias para outras publicações modernistas. Participaram e posicionaram-se nas querelas causadas pelo desentendimento entre Mário e Oswald de Andrade. A Verde conquistou o Brasil, recebeu a contribuição de diversos países da América Latina e teve um poema do poeta francês Blaise Cendras escrito para os jovens de Cataguases.
Os integrantes da revista Verde não deixaram grandes obras, mas poemas e reflexões que, por sua simplicidade formal, traduziam a imaturidade dos poetas e o primitivismo na poesia buscado pelo modernismo. A liberdade temática e inaugurada com o modernismo acontecia em Cataguases como exercício, como aprendizado, como descoberta e afirmação de novas possibilidades para a poesia.
RIO DE JANEIRO
Os meus sentidos são um menino
que veste um vestido novo. (14)
JUIZ DE FORA
Manchester das minas gerais
O crepúsculo escorrega violentamente
e cai / na paisagem de cartão-postal
e nos olhos encantados do Cristo-do-/Morro (15)
UIÁRA
Si você visse os olhos dela
Tão bonitos brilhando
Você tinha coragem
Fernão Dias Paes Leme
De manda-los examinar
Pelo ourives d'El Rei D. Afonso,
tinha Fernão Dias?
Tinha não...(16)
A permeabilidade dos integrantes da Verde a informações vindas de fora marcou anos a fio os membros do grupo. Em diversas cartas discutem o papel da revista, a importância de Mário de Andrade, ou a possibilidade de relacionamento de Verde.
Rosário Fusco, a própria encarnação da procura, pesquisa a jovialidade da revista de Cataguases, recebeu de modo mais decisivo as influencias externas, principalmente as de Mário de Andrade. Fusco recebia lições, ouvia lamentações e auxiliava Mário de Andrade na pesquisa de marchinhas e abolos mineiros para seu livro sobre música folclórica. Para Rosário Fusco, Mário teve um papel decisivo. Enquanto Francisco Inácio Peixoto estudava Direito, no Rio de Janeiro, Ascânio Lopes e Guilhermino César, em Belo Horizonte, Fusco permanecia em Cataguases mantendo intensa correspondência com Mário. Aos poucos, Fusco foi perdendo sua virgindade literária ao ouvir os conselhos de Mário e ao discutir poesia com o professor paulista. Fusco tornava-se vulnerável ao poeta: um ano após Verde haver terminado ele pedia uma receita a Mário para reconquistar sua autonomia literária. Como um mestre, Mário oferece a Fusco uma lição sobre o que é dependência e influencia, ilustrando a importância de referenciais na edificação da obra dos indivíduos. Para Fusco, Mário representou uma descoberta que abriu passagem para novos aprendizados, um farol verde sinalizando a permissão, a possibilidade da passagem.
"Você me pede uma receita para se / libertar de
mim, receita nesses casos / não há, creio. Depois
"se libertar" pode / ter conceito vário.
Certas tendências / gerais é possível aceitar, usar
sem que / haja influencia. Há aceitação de
princípios, nada mais. Se os outros
chamaram isso de influência, a besteira
é tão desumana, tão individualista, que
não pode interessar a indivíduo / socializado.
Assim panbrasileirismo / de psicologia, temática,
dicção, / vocabulário que em nossa literatura
ficou determinado como uma tendência / minha,
porque fui eu e sou o sistematizador mais
escandaloso disso / é uma tendência geral que se
aceita ou / não. Aceitar com reflexão, com
consciência não é ser influenciado, e se/ a malvadez
age até nisso, a gente como / ser humano, ser
socializado creio que / não deve se amolar com
a malvadez e deve estar em uma dela"(17).
Nessa carta Mário protege e consola Fusco, e defende-se também de seus críticos. Ao adotar o modernismo, Mário o avalia, universalizando os processos de aprendizagem em movimentos literários nos quais se verifica a experimentação lingüística.
Para Cataguases, seus poetas foram um marco que até hoje não encontrou superação.
Francisco Inácio Peixoto permaneceu na cidade, erigiu um patrimônio arquitetônico modernista, praticou e incentivou o mecenato. Graças a seu trabalho, Portinari, Djanira, Burle Marx deixaram suas marcas em Cataguases. Francisco Inácio Peixoto encontrou, ainda; disponibilidade para a literatura, publicando poesias, romances e contos.
Rosário Fusco traduziu clássicos da literatura, realizou diversos romances como O Agressor, um dos primeiros representantes brasileiros do realismo fantástico. Guilhermino César mudou-se para o Rio Grande do Sul, onde se dedica à vida acadêmica, redigindo livros de crítica literária e poesias. Enrique de Resende organizou a história afetiva de Cataguases no livro Pequena História Sentimental de Cataguases, e outras publicações do gênero.
Os ases representaram um precedente histórico para aquela comunidade, desenvolveram nela o gosto pela literatura. Não digo que a cidade de uma maneira genérica seja sensível a literatura, mas freqüentemente surgem em Cataguases poetas e suplementos literários. O poema Processo, poesia que explorou os signos não verbais para a realização do poema , teve alguns signatários em Cataguases, dos quais se destacam os irmãos Joaquim, Aquiles Branco, P. J. Ribeiro e Ronaldo Werneck.
Este novo grupo de poetas também alcançou circulação nacional, sendo citados em coletâneas como a Revista de Cultura Vozes dedicado ao Poema-Processo e à Poesia Experimental. Editaram a partir de 1968 o SLD suplemento/literatura/difusão, anexo ao Jornal Cataguases. Em maio de 1975, como Suplemento Cultural do Diretório Acadêmico Francisco Inácio Peixoto e do Jornal Cataguasense, lançaram Totem, jornal que circulou sem publicidade definida até o início da década de oitenta.
Novamente a vanguarda literária volta a ser discutida e praticada em Cataguases. Rosário Fusco, Francisco Inácio Peixoto e Guilhermino César, principalmente os dois primeiros, são chamados para escrever e dar entrevistas para esta geração de novíssimos poetas da cidade.
Novos livros são lançados em Cataguases, a maioria deles custeados pelos próprios autores. Dentre as realizações do grupo responsável pelo Poema-Processo, destaca-se, em 1969, o primeiro "Festival Audiovisual de Cataguases", reeditado no ano seguinte. Ainda era moda na televisão os festivais da canção e já se pensava em festival audiovisual em Cataguases. O movimento de arte postal, a arte da poesia através do correio, também encabeçado por Joaquim e Aquiles, P.J.Ribeiro e Ronaldo Wernck, entre outros, restabelece a comunicação de Cataguases com o mundo. Em 1969 e 1970, realizam-se duas exposições internacionais de Poesia Visual.
Cataguases é uma cidade rara. Na década de vinte, o cinema de Humberto Mauro e Pedro Cornello fizeram os habitantes da cidade se transformarem em atores, e as ruas em cenário. No quarteirão seguinte, a revista Verde ganha o Brasil e a América Latina. Quatro décadas depois, apareceram suplementos literários e concursos de poesia , e a cidade tem que conviver com outra vanguarda.
Esta cidade parece viver de grupos. A turma do Rosário Fusco, o pessoal de Joaquim Branco. Histórias e estórias criam uma tradição , solidificam op habito literário. Grupos e jovens que não envelhecem, porque precisam alimentar a chama da curiosidade, o desejo de descobertas, para não sucumbir ao movimento da Cataguases escondida nas palavras de Ascânio, das cidades do interior do Brasil.
Belo Horizonte, outubro de 1993
Patrícia Moran
Historiadora
Mestrando em Comunicação pela UFRJ
Desenvolveu trabalhos de pesquisa no CIEC-RJ para o
qual redigiu o "Quase Catalogo 3
Estrelas do Cinema Mudo - Brasil - 1908 - 1930"
Realização de vídeos.
NOTAS
(1) CÉSAR, Guilhermino. Os verdes da Verde foc-simile Metal Leve.
(2) Idem, ibidem
(3) in SALLES GOMES, Paulo Emílio, 1975
(4) Idem, ibidem
(5) ANDRADE, Mário. Diário Nacional 10/07/32
(6) VERDE, nº 4
(7) Tristão de Athayde apud Cecília
LARA A alegre e paradoxal revista verde
Anexo fac.simile
(8) VERDE Nº 5
(9) idem, ibidem
(10) VERDE nº 3
(11) O Cataguases. 21/07/27
(12) Guilhermino César entrevistado por Kátia Bueno ROMANELLI
(13) VERDE nº 3
(14) VERDE nº 2
(15) idem, ibidem
(16) VERDE nº5
(17) ANDRADE, Mário, Carta de 17/12/31
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Afonso (org.). Modernismo. Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo. Perspectiva. 1975.
BRADBURY, Malcom E MC FARLANE, James (org.). Modernismo: Guia Geral. SP. Companhia das Letras, 1989.
BUENO, Antônio Sérgio. O Modernismo em Belo Horizonte: Década de 20. BH. UFMG/PROED, 1982.
COSTA,Levy Simões da. Cataguases Centenário. Dados para sua história. Cataguases, 1977.
DIAS, Fernando Correia. O Movimento Modernista em Minas: Uma Interpretação Sociológica. Brasília, EBRASA, 1987.
FERREIRA, Delson. Ascânio Lopes (Vida e Poesia BH. Difusão Pan Americana do Livro, 1967)
MORAES, Eduardo Jardim. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica, RJ, Groal, 1978.
PAZ, Octávio. Os filhos do barro. RJ, Nova Fronteira, 1984.
RESENDE, Enrique de. Pequena História Sentimental de Cataguases, BH, Itatiaia, 1969.
ROMANELLI, KÁTIA BUENO. Revista Verde: Contribuiçao para um estudo do Modernismo brasileiro. SP, 1981. USP: Tese de mestrado (Xerox).
SALLES GOMES, Paulo Emílio. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, SP: Perspectiva, EDUSP, 1974.
Para um estudo sobre "Os ases de Cataguases" . SP.USP,F.F.C.H. Separata da Revista
De Língua e Literatura, 1977.
SANTIGO. Silviano (ensaios). Nas malhas de letra. SP. Companhia das Letras, 1989.
VERDE. Revista Mensal de Arte e Cultura. Diretor: Enrique de Resende.
Redatores: Martins Mendes e Rosário Fusco (fac. Simile). Metal Leve. Setembro de 1927 à janeiro de 1928.
Sumário. Adendo que acompanha a reedição da Revista VERDE.
Guilhermino CÉSAR. Os "verdes" da VERDE.
Cecílio LARA. A "alegre e paradoxal" revista VERDE de Cataguases.
Plínio DOYLE, VERDE (História de Revistas e Jornais Literários).
Comentário
E a Literatura ?
O projeto "Cataguases, um olhar sobre a modernidade" enfatiza, por razões mais ou menos óbvias, o aspecto mais plástico da cidade que, no entanto, tem sua razão de ser, reconhecida na literatura.
Foi a Verde que possibilitou a seus integrantes relacionar-se em todas as esferas de cultura nacional. Foi através da convivência com expressões nacionais de arte literária que se estabeleceu o contato com expressões nacionais das artes plásticas, da arquitetura e da música. As cartas de Mário de Andrade, a amizade de Marques Rebello, Manuel Bandeira, Otávio de Faria, Walter Benevides, Augusto Frederico Schmidt, possibilitaram aos meninos de Cataguases o contato com Portinari, Di Cavalcanti, Oscar Niemayer, Brecheret, Tarsila, Santa Rosa, Villa Lobos.
Os meninos do Ginásio de Cataguases que fizeram o Movimento Verde freqüentavam um grêmio literário. A cultura vinha de uma Europa empobrecida pela guerra, mas rica de idéias e humanismo. E eles as exploravam no grêmio do ginásio onde discutiam filosofia, línguas, ciências humanas, ciências políticas. Não tinham conhecimento especializado, tinham preocupações sociais e conhecimento geral e universal. Como a Europa, o Brasil se iniciava na preocupação de valorizar as características notas de seu povo.
E da discussão das idéias surgiu a necessidade de fixa-las nas letras: são os romances, os cantos, a história, a poesia. Torna-se presente uma cultura ou um modelo de cultura que se prevalece essencialmente do valor do homem como ser humano, não como ser econômico.
Os garotos de Cataguases se deixaram levar por essa opção cultural que somente viria engrandecê-los e projetá-los.
Europa empobrecida e Brasil pobre, mas ambos criativos, criando riquezas a partir da destruição ou do nada.
E foram os escritores, os literatos que mostraram o valor de sua atividade, pois lhe era possível criar e desenvolver o pensamento sem grande necessidade de meios materiais. O escritor, basicamente, usa papel, lápis e idéias e dessa forma cultua a vida.
Cataguases espera que o projeto, dirigindo seu olhar sobre a modernidade, se faça também através da literatura, dando ênfase à ficção sempre próxima dos sonhos e da utopia, para que se conduza o povo ao seu destino real.
Tarcísio Henriques Filho.
Prefeito Municipal de Cataguases.
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