CATAGUASES:
Um olhar sobre a
MODERNIDADE.






 



Capa do Livro Humberto Mauro
o Pai do Cinema Brasileiro



Humberto Mauro e sua irmã Ophélia



Humberto Mauro em 1926



A Atriz Eva Nil



Cartaz de Cinema em Cataguases



Cartaz do Filme Na Primavera da Vida



Cena do Filme Brasa Dormida



Cena do Filme Brasa Dormida



Cena do Filme Meus 8 anos



Cena do Filme Meus 8 anos



Cena do Filme Sangue Mineiro



Cartaz do Filme Thesouro Perdido



Anúncio do Lloyd Brasileiro



Cena do Filme Descobrimento do Brasil



Prêmio Coruja de Ouro



Cartaz do Filme Lábios Sem Beijo



Prêmio de Melhor Filme Brasileiro



"O Anunciador": Cinema e Literatura de vanguarda finalmente se encontram em Cataguases.



Três gerações de cineastas da família Mauro: Humberto, o filho Zequinha e a Neta Valéria.



A visão do mestre: Humberto Mauro manteve até o fim a paixão pelo cinema 32.



H. Mauro integrado ao seu universo: o meio rural.



"Brasa Dormida": o cinema moderno de Mauro incluía até mesmo os mitos biblícos.



A jovem moderna e decidida: Eva Nil "Senhorita Agora Mesmo".



A Modernidade de "Senhorita Agora Mesmo": na roupa e na postura da heroína.



50 anos de "Tesouro Perdido": o Modernismo no cinema cataguasense em segundo plano.

 



Uma foto rara: Humberto Mauro (de paletó cinza, debruçado na escada) recebe os jovens da "Verde" durante a filmagem de "Sangue Mineiro".


 

Cinema


Modernidade e modernismo no ciclo de Cataguases


Paulo Augusto Gomes


O Cinema como diversão não se propunha modernista, sequer se percebia como sétima arte. Embora se filmasse muito no Brasil dos anos 20, o Cinema não figurou na Semana da Arte Moderna de 1922. Ainda assim, o filme é resultado da moderna tecnologia e forma, por excelência, da indústria cultural. O Cinema - diversão & arte - abrange a cultura de massas e também a vanguarda; rompe com os limites do espaço e do tempo e consolida-se, através do Ciclo de Cataguases, na história da cultura mineira. 

O chamado Ciclo de Cataguases - surto de produção cinematográfica que a cidade conheceu nos anos 20 - revelou três nomes principais: HUMBERTO MAURO, PEDRO COMELLO e sua filha EVA NIL (pseudônimo de EVA COMELLO), uma das mais conhecidas atrizes do cinema brasileiro do período mudo. Analisar a presença da modernidade e do modernismo no cinema - forma de expressão da vida de Cataguases - requer um pouco da história desses três personagens e da cidade em que viviam.

"De primeiro o lugar se chamava
Arraial do Meia-Pataca
Por causa de terem achado
Num Corguinho que por aqui passava
Meia-pataca de ouro.
Também nunca que acharam mais
nada..." (1)

Assim Francisco Inácio Peixoto, um dos escritores brasileiros revelados pela VERDE, descreve em seu poema Meia-Pataca a história de Cataguases: prematura decadência da mineração, atividade agrícola com destaque para o café, responsável, no início do século XX, pelas maiores fortunas da região. De 1900 a 1920, o café perde escala nacional e local, e novas lideranças políticas, não mais ligadas aos fundadores, surgem em cataguases. A proximidade geográfica da Zona da Mata com o Rio de Janeiro possibilitava que as transformações fossem rapidamente absorvidas em Cataguases e a chegada do cinema - exibido regulamente a partir de 1911 foi recebida com um de espanto e fascinação. Os filmes americanos - que disputavam o mercado brasileiro com as produções francesas e alemãs - ocupavam as telas do Cine-Teatro Recreio e provocavam reações frenéticas na cidade. É esse o ambiente de 1920, quando Humberto Mauro casa-se com Maria Vilela de Almeida (Bêbe), atriz em Tesouro Perdido, com o pseudônimo de Lola Lys.
Humberto Mauro, com a base de um curso de Engenharia, em Belo Horizonte, abandonado pelo meio e de outro feito por correspondência, garante a sobrevivência da família com uma oficina de serviços elétricos. Nas fazendas da região configura-se um mercado promissor, além do interesse técnico relativo à distribuição da energia elétrica e seu uso em máquinas, que encanta o jovem Mauro. Essa curiosidade permanente vai levá-lo a estudar radiotelefonia no Rio de Janeiro e Humberto Mauro utilizará de aparelhagem de radioamador, mesmo após seu retorno, no final da vida, a Volta Grande, onde nascera em 30 de abril de 1897. Mauro chega à fotografia e ao cinema através de PEDRO COMELLO, seu mestre na arte das imagens, fixas ou em movimento.
PEDRO COMELLO, nascido em Novara, na região piemontesa da Itália, chega a Cataguases em 1914, vindo do Cairo, com a mulher Ida e dois filhos: Eva e Roger. Estabelece-se na Colônia Major Vieira, destinada a imigrantes italianos. Poliglota, pintor, executante de diversos instrumentos musicais, COMELLO é o protótipo do artesão italiano criativo, que pode ser encontrado em outras cidades de Minas Gerais, onde o cinema também se fez presente no anos 20: Igino Bonfioli, em Belo Horizonte; Carlos Massoti, em Guaranésia e Paulo Benedetti, em Barbacena. Homem de múltiplos talentos, logo COMELLO se instala na região central da cidade e monta, em sua residência, um ateliê de fotografia. Nesse ateliê, HUMBERTO MAURO se informa a respeito de emulsões e revelação de fotos fixas. A amizade entre o jovem habilidoso (27 anos) e o imigrante quarentão aprofunda-se e tem início a colaboração que resultou no Ciclo de Cataguases.
MAURO E COMELLO freqüentaram, quase diariamente, o Cine-Teatro Recreio, já comprometido com os filmes americanos na composição de sua programação. Apenas um ou outro documentário brasileiro, de média metragem. Nada no domínio da ficção - quadro que, ainda hoje, caracteriza a exibição cinematográfica no país. A superação de problemas técnicos é que os atrai, ao enfrentarem o desafio da realização de filmes: como iluminar a cena, dirigir atores, montar seqüências. Saturados das emoções baratas de Os Quatro Agentes Secretos ou Punhalada Misteriosa, ambos protagonizados pelo norte-americano Eddie Pollo Rolleaux, comentam à saída do Recreio: 
-É possível a gente fazer isso aí!
Não devia mesmo ser muito difícil imitar a banalização da narrativa clássica a que assistiam. O domínio da técnica cinematográfica é algo que se adquire com rapidez. Difícil é colocar essa técnica a serviço de uma sensibilidade amadurecida. MAURO não se interessava tanto pela narrativa do filme mas observava, sobretudo,a ambienaçao da história no meio rural em DAVID, o Caçula, de Henry King (Tol'able David), coisa que viria a fazer em todos os grandes momentos de sua obra, em especial nos primeiros filmes do Ciclo de Cataguases.
No Brasil dos anos 20 filmou-se em quase todo o país e, muitas vezes em cidade do interior, isoladas das grandes metrópoles. Não era tarefa difícil, pois o cinema sonoro ainda não havia chegado, com seus complexos equipamentos, e o preço do negativo era muito barato. Bastava um pequeno laboratório, onde à noite o fotografo revelava e copiava os metros de filmes que havia sido imprimidos durante o dia. A eclosão de ciclos regionais em Manaus, Recife, Pelotas, Porto Alegre, Campinas, Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo - " a película virgem era comprada a dez tostões o negativo e quinhentos réis o positivo", segundo depoimento do pioneiro José Silva (2) - foi maior em Minas Gerais. A atividade cinematográfica foi marcante em Belo Horizonte, Barbacena, Cataguases, Pouso Alegre, Ouro Fino, Juiz de Fora e Guaranésia, mas os personagens desses ciclos não se conheceram e nem se freqüentaram. Não faziam idéia das dificuldades e do tipo de trabalho de cada um, a não ser através da divulgação precária de revistas do Rio de Janeiro, como selecta, Para Todos, Cinearte, A Scena Muda, as duas últimas em estágio posterior. Os filmes não tiveram distribuição em nível nacional. Dos três filmes em que EVA NIL, atuou, apenas o último - Barro Humano, de Adhemar Gonzaga - realizado no Rio de Janeiro, já fora do Ciclo de Cataguases, foi lançado em circuito maior. Mesmo assim ele recebia cartas de fãs de todo o Brasil, do Estados Unidos e de Portugal, pedindo fotos autografadas ou uma lembrança qualquer. O star system exportado pelos Estados Unidos para todo mundo chegava a Cataguases e incorporava EVA NIL. Na segunda metade da década de 20, um concurso em nível nacional, destinado a eleger um rapaz e uma moça para fazer carreira em Hollywood, pré-selecionou EVA NIL, que não pôde continuar na competição porque o regulamento exigia brasileiros natos e ela, como se sabe, nascera no Egito. Os vencedores foram Olímpio Guilherme e Lia Tora. 
Entre os cineastas não havia a mentalidade autoral - ninguém filmava porque quisesse expressar-se e raríssimos intelectuais haviam se envolvido naquela "diversão de feira". Filmava-se porque era uma atividade comercial como qualquer outra, mas um charme irresistível que podia dar um bom retorno e prestígio. Nada havia no cinema brasileiro do período 1920/25 que anunciasse propostas modernistas. A Semana de Arte Moderna de 1922 não havia incluído a chamada "sétima arte", isso explica - somado às revelações e copiagens precárias e ao material perecível e inflamável da película virgem (nitrato de celulose) - o desaparecimento de boa parte da produção brasileira do cinema mudo. Embora os movimentos como o Expressionismo alemão já fossem conhecidos, ninguém pensava estar criando arte. Apenas no início dos anos 30, Limite, de Mário Peixoto apresentará uma acentuada característica experimental/autoral. 
Assim, em 1925, quando MAURO e COMELLO decidem fazer um filme, eles podem ser modernos apenas em relação aos recursos escolhidos: uma filmadora Pathé-Baby, que utiliza película de 9,5 centímetros, com a grifa incidindo na perfuração entre os fotogramas, ao invés de lateral, como era, e permaneceu costume. Essa filmadora representava, na época, o papel que as câmeras VHS têm na atualidade, permitindo que os interessados documentassem suas famílias, residências e viagens.
MAURO e COMELLO não desenvolveram domesticamente suas aptidões. Ao contrário, preferiram construir uma pequena história - Valadião,o Cratera - base para uma curta-metragem com apenas três atores. O personagem-título é o vilão que rapta a mocinha e a esconde em uma pedreira, de onde é salva pelo galã. MAURO é o diretor, COMELLO faz a fotografia e sua filha EVA representa o único papel feminino. O herói é José Augusto Monteiro Barbosa, primo de MAURO, e Valadião é vivido pelo libanês Stephanio Georges Youness, comprador de café e amigo de COMELLO. Sua exibição, com certeza, ficou restrita ao círculo familiar e dos amigos, pois não havia como projetá-lo em um espaço maior como o Cine-Teatro Recreio. Não restou ao menos um fotograma desse filme, mas não é difícil imaginar o modelo adotado, a partir das fitas americanas, que tudo devem a DAVID WARK GRIFFITH, o homem que sistematizou a narrativa clássica característica do cinema americano: planos abertos seguidos de outros mais próximos, preservando-se os primeiros planos (closes) para os momentos dramáticos. Em Valadião, o Cratera MAURO já apresentava a base de sua obra: a descrição de um ambiente rural, à qual o tempo se encarregou de dar a dimensão definitiva da poesia.
O passo maior - a feitura de um longa metragem - trouxe à cena o nome de HOMERO CORTES DOMINGUES, comerciante de passos, dono da prestigiosa e prestigiada Casa Carcacena, de Cataguases. MAURO, COMELLO e DOMINGUES associaram-se para a criação da produtora PHEBO SUL AMÉRICA FILM. O salto qualitativo exigia equipamento mais sofisticado: câmera Hernemann alemã, de segunda mão, mas em bom estado e filme virgem em 35 milímetros, adquiridos no Rio de Janeiro. Os três irmãos - argumento,direção e fotografia de PEDRO COMELLO, com HUMBERTO MAURO em um dos papeis principais - não foi concluído por dificuldades financeiras e técnicas. COMELLO desistiu da produção mas editou um folheto de 20 páginas com a descrição do "drama em 16 partes": um sem numero de personagens com nomes estrangeiros vivendo aventuras rocambolescas e situações extremas: Marcos Wayne, Richard Walling, William Richemond, J.Russei e Harry, misturados a brasileiríssimos Lydia, José, Cachimbo e Unha de Gato.
Este fracasso inicial abalou a disposição de HOMERO CORTES DOMINGUES e foi preciso que outro comerciante de Cataguases apoiasse a nascente industria cinematográfica da cidade. AGENOR CORTES DE BARROS, presidente da Associação Comercial e futuro prefeito, associa-se aos três. A experiência de Os Três Irmãos leva MAURO - já que o exercício da direção era ocupado alternadamente entre ele e COMELLO - a uma história de produção mais simples intitulada Na Primavera da Vida, cujas filmagens foram iniciadas em 1925, com EVA NIL e BRUNO MAURO (pseudônimo de Francisco Mauro, irmão do diretor). Ambientado na pequena Vila de São João - na divisa de dois Estados, o filme narra uma aventura de contrabando de cachaça, fato que amargura o Coronel Souza - vivido por Otavio Alves, pai do cantor Lúcio Alves - responsável pela arrecadação do posto fiscal. Os vilões serão desmascarados pelo engenheiro do governo encarregado de obras na região, por quem a filha única do coronel se apaixona. Apenas 30 fotografias de Na Primavera da Vida foram salvos, mas neste filme os caminhos de MAURO e dos rapazes da VERDE (que ainda não existia, em 1926, quando o filme ficou pronto) se cruzaram. ENRIQUE DE RESENDE, o mais velho deles, escreveu os intertítulos e Rosário Fusco, o mais novo, foi o responsável pela jaca que, na seqüência final, se esborracha na cabeça de herói.
O jornal O Cataguases recebeu com reservas o filme assinado por MAURO sob o pseudônimo de Reynaldo Mazzei. Exibido no Rio de Janeiro, em seção especial para Adhemar Gonzaga e demais críticos e diretores da recém-lançada revista Cinearte, Na Primavera da Vida agrada pela boa discrição de tipos e vivências brasileiras, mas recebe críticas pela ausência do luxo e sofisticação - a chamada falta de fotogenia. MAURO retorna a Cataguases com a lição aprendida, mas agora é COMELLO quem dirige Os Mistérios de São Mateus, outra história complexa, carregada de nomes americanos - Red Bedford, G.Brown, Dewis Storm - embora mais simples que Os Três Irmãos. Mais uma vez a ação se passa na região entre estados. A paralisação da segunda produção dirigida por COMELLO gera uma crise incontornável: ele e a filha abandonam a Phebo. O segundo longa metragem de MAURO, Tesouro Perdido, conta com a colaboração de COMELLO em parte da fotografia, mas EVA NIL, permanecerá irredutível e será substituída por LOLA LYS, pseudônimo de Bêbe, mulher de MAURO. 
Do Ciclo de Cataguases, Tesouro Perdido é o mais antigo entre os filmes preservados e nele MAURO se revela um técnico excepcional, ultrapassando as limitações com engenhosidade e imaginação. Uma tempestade é criada com luz, um pano preto e um regador o galope das patas de um cavalo é filmado com uma "teleobjetiva" de lata de farinha láctea. MAURO é fiel ao cinema americano da época, pródigo em maquetes e outras falsificações da realidade. Na descrição do universo acrescenta, às cenas de ação, momentos documentais do meio rural, povoado de animais, rios e montes. Tesouro Perdido aproxima-se, sob este aspecto, da série Brasilianas, filmes produzidos pelo INCE - Instituto Nacional do Cinema Educativo - de seu último longa-metragem O Canto da Saudade, nos anos 50, e de O Carro de Bois, documentário de 1970, que encerra sua obra. Sob influência de Adhemar Gonzaga - que pede charme na fotogenia - um dos núcleos da ação é uma chácara na região do Acaba Mundo, em Belo Horizonte, e há também cenas rodadas no Rio de Janeiro.Tesouro Perdido foi premiado com o Medalhão Cinearte de melhor filme brasileiro, em 1927. Os laços entre MAURO e Adhemar Gonzaga vão se refletir na sofisticação dos ambientes e personagens e, em Brasa Dormida, a heroína torna-se uma flapper desinibida, cortejada de pijamas pelo galã e vivida pela atriz carioca NITA NEY. Em Sangue Mineiro, a portuguesa-carioca CARMEN SANTOS vive o papel principal, pois MAURO jamais permitiria, e Cataguases tampouco, que sua esposa fizesse papéis de vamp. MAURO ganha em sofisticação, mas perde em expressão de seu mundo. A presença do moderno em seus filmes tem sabor de concessão, embora não chegue a criar obras despersonalizadas. A caminhada de retorno em direção aos hábitos de raiz e aos lugares que o encantam será empreendida, ao se ver livre de compromissos. À sua maneira, MAURO encontrará CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE:

"cansei de ser moderno 
agora quero ser eterno." (3)

Em Tesouro Perdido acontece o segundo encontro com os jovens da VERDE, com seu primeiro número em circulação. Rosário Fusco escreve:

"Quando o Sr. Humberto Mauro
abandonou tudo para explorar a 
indústria cinematográfica - todo
mundo riu do Sr. Humberto/Mauro.
Agora quem rir de/todo mundo é o 
Sr. Humberto/Mauro.(...) Com esse filme
Cataguasense-brasileiro-mineiro/retratou
quase fielmente as coisas de nossa terra.
Já é atuar/pela brasilidade(coisa
raríssima/entre os brasileiros!) Aquela
cena/do sapo e das/garruchinhas,por
exemplo,tá/boa pra burro! Aquele negro
tá/gozadíssimo!E outras coisas/mais
que só a gente assistindo a/fita mesmo.
Esse trabalho tá/perfeito!"(4) 

MAURO e o modernismo vão se encontrar poucas vezes mais. No quinto número da VERDE, é publicado artigo de J.Martins de Oliveira - intitulado Cataguases, o cinema, a Phebo, a lei de menores,etc, onde o professor de geografia do Ginásio de Cataguases escreve:

"Os atuais organizadores da 
promissora fábrica terão de/lutar muito
contra a rotina,/contra a má vontade.
Mas não/se importem com isso. Mão à
/obra.É preciso explorar/motivos outros,
que o gênio/latino possui,sem cair
no/lugar comum das cenas/indecentes,
que nos chegam do/país de Tio Sam" (5)

E no último número, dedicado à memória de ASCÂNIO LOPES - poeta VERDE falecido em 1929 - há uma pequena nota informativa sobre o início dos preparativos da filmagem de Sangue Mineiro, ainda com o título de Sangue Novo. Durante a filmagem, MAURO e os VERDES posam para fotografias, no estúdio da Phebo Film. Antes, sob encomenda da Prefeitura Municipal, MAURO dirigirá O Fox-trot da Cidade, pequeno documentário em cujo título percebe-se a influência de Berlim, Sinfonia de uma Grande Cidade, do alemão WALTER RUTTMANN, documentário na linha experimentalista. O título, considerado frívolo pelo prefeito Lobo Filho foi substituído por Sinfonia de Cataguases, tornando ainda mais óbvia a citação. 
GUILHERMINO CESAR, no texto introdutório à fac-similar da VERDE refere-se, elegantemente, ao mútuo afastamento entre MAURO e o grupo de jovens literários:
"Nem sabíamos como é que/Humberto 
Mauro, vivendo ao/lado da gente,
absorvido com a/sua Phebo Filmes, se
/equilibrava numa segregação
/cultural tão opressiva.(...)
Quem nos revelou seus méritos
foram as revistas e os jornais
do Rio. Residimos ali mesmo, a 
seu lado, uma porção de tempo,
mas não chegamos a ajudá-lo 
em sua atividade desbravadora. 
A arte de Mauro era destinada às
multidões; a nossa, uma elucubração
solitária, reserva-se a poucos
E duvidosos receptores."(6)

Já FRANCISCO INÁCIO PEIXOTO, em depoimento escrito a meu pedido, é mais incisivo: 
"Parece-me estranho, hoje, que
os rapazes da VERDE nenhum
relacionamento tivessem com
Humberto Mauro, se não aquele
de amizade antiga que se oferecia e 
estreitava em encontros gratuitos e
esporádicos em cidade pequena.
Seus filmes, então, só nos
Interessavam em limites
Estritamente folclóricos:
Ver na tela gente de Cataguases
trabalhando de ator de cinema,
provocando ruidosas
manifestações das torrinhas.(...)
Homens de muitos ofícios
jamais se ligou à gente a não
ser para bate-papos (...)
Ninguém como ele para contar 
um caso ou caricaturar um dos
tipos municipais.(...) Foi pena
que não houvéssemos atentado
para o trabalho de Humberto
Mauro. (...) Pena que assim 
acontecesse. Mas a verdade é
que, maior do que o nosso, era o
desinteresse de Humberto pela
VERDE. Foi pena, foi, mas
estávamos taco-a-taco." (7) 

ROSÁRIO FUSCO- sempre ele- ainda escreveu em O Cataguases de 12 de fevereiro de 1928, uma crítica a Senhorita Agora Mesmo, produção isolada da Atlas Film, criada por PEDRO e EVA COMELLO, logo após a cisão com MAURO,DOMINGUES e BARROS. Do filme- um curta-metragem de ficção na linha dramática- sobraram alguns poucos segundos. Foi exibido no Cine-Teatro Recreio, no mesmo programa de A Dama da Máscara, da Metro Goldwyn, com Anna Q. Nilson e Ruth Rolland. A história é a de uma valente e decidida moça, que mora com a mãe e o irmão em uma fazenda próxima da fronteira e que "não deixa para amanhã o que se pode fazer hoje", por isso o título do filme. COMELLO fotografou e dirigiu EVA NIL, cujo prestigio viabilizou a exibição no Rio de Janeiro, mas o filme teve carreira curta e discreta, com críticas não muito favoráveis. A partir daí, COMELLO dedicou-se apenas ao seu ateliê de fotografia, até sua morte, nos anos 50. EVA NIL fez ainda Barro Humano, antes de dedicar-se a ajudar o pai em seu ofício.
Com a Phebo, transformada em sociedade anônima para a produção de Brasa Dormida, a situação foi outra e, ao final do período, MAURO dominava amplamente os recursos de linguagem então disponíveis. Se, sob influência de GONZAGA, o luxo invade a obra maureana, sua expressão cinematográfica também se moderniza. A cena em que o herói e a mocinha apanham frutas em uma árvore, sem perceber a ameaça de uma cobra enrolada em um galho, é exemplo disso. A conotação bíblica é evidente: Adão e Eva no paraíso, o fruto proibido, a serpente. Mas a cobra é um claro símbol fálico integrado ao exacebado erotismo do momento. O uso de uma simbologia subjacente à ação física dos personagens recebeu críticas. Henrique Pongetti, a propósito de Ganga Bruta- obra-prima de MAURO rodada no Cinédia, Rio de Janeiro- refere-se pejorativamente ao diretor como Freud de Cascadura. Outro exemplo está em Sangue Mineiro, rodada em Belo Horizonte no qual MAURO, fiel à narrativa clássica, adota a solução genial de apresentar a cidade começando do alto da Serra do Curral. Com uma série de panorâmicas- movimento em que a câmera gira em torno de seu eixo- horizontais, alternadas da direita para a esquerda, da esquerda para a direita sucessivamente, os movimentos são filmados de locais cada vez mais próximos até, de repente, a câmera enquadrar o centro da cidade, próximo à Escola de Engenharia. A beleza da série de movimentos é estonteante e não pode ser descrita por palavras.
Brasa Dormida e Sangue Mineiro tiveram distribuição nacional pela Universal e Urânia, respectivamente, esta ultima representante da UFA alemã. O próprio MAURO declarou:

"Confiávamos no nacionalismo/ e na 
tolerância das platéias, o 
que até hoje não me desiludiu.
Em breve, porém, comerciantes
e técnicos verificamos o ledo 
engano: o filme nacional, sob
todos os pretextos, encontrava/uma
resistência compacta/e invencível entre
os distribuidores,/amarrados que
estavam ao monopólio/estrangeiro, que
avassalava com os/seus produtos o
mercado brasileiro, de ponta a ponta.
Obtivemos o/lançamento de Brasa
Dormida e o de/Sangue Mineiro, mas
rebaixando-nos à/condição de pedintes.
Veio o/fracasso financeiro. À falta de
lucros/compensadores, a sociedade
/dissolveu-se. Sangue Mineiro deu
/remate ao Ciclo de Cataguases (...)" (8)

A sofisticação pretendida por GONZAGA sacrificou a expressão do mundo maureano e representou um insuportável aumento de custos para a Phebo. Em 1926, a produção de Na Primavera da Vida custou 12 contos de réis; em 1927, Tesouro Perdido gastou 20 contos; em 1928, Brasa Dormida elevou esse valor para 36 contos de réis e, Sangue Mineiro, o mais caro, consumiu 48 contos. Nem mesmo a co-produçao da estrela CARMEN SANTOS foi suficiente para tirar a empresa do vermelho.
MAURO, então, cede ao insistente assédio de GONZAGA e, em 1930, dirige a primeira produção para a carioca Cinédia: Lábios sem Beijos. A Phebo fecha as portas falida e sem seu principal elemento criador. Mas isso aconteceria ainda que Sangue Mineiro tivesse dado lucro e que MAURO permanecesse em Cataguases, porque a chegada do cinema sonoro desmantelou por completo os ciclos regionais dos anos 20 e concentrou a produção brasileira nos dois maiores centros urbanos- Rio e São Paulo- a partir da década de 30.
A tão sonhada simbiose entre o cinema e a literatura só aconteceu em Cataguases, no início dos anos 70, quando PAULO BASTOS MARTINS, com grande vivência cineclubística e tendo a seu lado teatrólogos e poetas- alguns ligados ao poema-processo- realizou O Anunciador, oHomem das Tormentas. Este filme, contemporâneo dos primeiros filmes de JULIO BRESSANE e ROGÉRIO SGANZERLA- foi uma experiência isolada que fez da palavra um elemento importante da narrativa, apesar de dedicada ao cinema visual de HUMBERTO MAURO. O modernismo chegou, finalmente, ao cinema de Cataguases com O Anunciador, o Homem das Tormentas, mas os tempos são outros. A cidade já conheceu a arquitetura de NIEMEYER e a pintura de PORTINARI; a falta de continuidade, porem, levou a novo período de entressafra, que ainda perdura.

Belo Horizonte, outubro de 1993.
Paulo Augusto Gomes
Cineasta, dirigiu os filmes "Graças a Deus"
(1978), "Os Verdes Anos" (1979), "Sinais da 
Pedra"(1980) e "Idolatrada" (1983) e também
realiza vídeos.
Crítico, ensaísta e pesquisador, editou e
coordenou a publicação "Caminhos do Cinema Mineiro" (1978-79).
É membro do Centro de Pesquisadores do 
Cinema Brasileiro.

NOTAS.

(1) Meia-Pataca, poesia de Guilhermino César e Francisco Inácio Peixoto, Cataguases: VERDE, 1928.
(2) Caminhos do Cinema Mineiro II: Exemplos de Pioneirismo, org. Paulo Augusto Gomes, Belo Horizonte: Suplemento Literário do Minas Gerais nº 639, de 30/12/ 1978. 
(3) Obra Completa de Carlos Drummond de Andrade, Aguiar, 1967.
(4) VERDE, reedição fac-similar patrocinada por Metal Leve S.A, 1978.
(5) VERDE, op.cit.
(6) VERDE, op.cit.
(7) Humberto Mauro e a VERDE, Francisco Inácio Peixoto, Suplemento Literário do Minas Gerais nº 734, de 25/12/1980.
(8) Introdução ao Cinema Brasileiro, de Alex Viany, MEC/INL, 1959.

Comentário 
O primeiro encontro do Brasil com a modernidade foi marcado para 1922, em São Paulo, onde a Semana da Arte Moderna finalmente desatracou a cultura nacional do cais do século XIX. Minas Gerais iniciou essa viagem a partir da estação de Cataguases, colocando nos trilhos da nova era a locomotiva de sua literatura, que viria a comboiar suas artes plásticas, sua arquitetura, seu cinema e seu "design".
Transcorridos setenta anos desse rito de passagem da nossa cultura, chega a hora de um retorno investigativo a Cataguases, para se desvendar ali o papel de Minas na Semana e as marcas da Semana em Minas.
A Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais se associa ao Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural/IBPC, ao Instituto de Arquitetos do Brasil e à Prefeitura Municipal de Cataguases na promoção desse evento que, abrindo o foco sobre a expressiva participação dos artistas e intelectuais de Cataguases no movimento, revele sua importância na deflagração de um processo modernizador em Minas Gerais.
A agitação criadora em Cataguases, a par das marcas culturais indeléveis que deixou, antecipou, desde os anos 20, tendências que se consolidam neste final de século. O mecenato surge como elemento decisivo na produção e na difusão de bens culturais, encarnado na figura de empresários de perfil tão moderno quanto os artistas que apoiavam. Não se tem noticias de injeção de recursos públicos na formação do mais importante apoio da modernidade em Minas Gerais.
Foi a iniciativa local privada que promoveu a invasão de Cataguases pela arquitetura, pelas artes plásticas e pelo "design" com as características de modernidade que até hoje identificam e orgulham a cidade. Esse mesmo viés empresarial tornou possível a concretização do Ciclo Cinematográfico de Cataguases, que produziu um conjunto de obras original e, para a época, relativamente abundante.
Brilharam nesse movimento pioneiro os nomes do imigrante italiano Pedro Comello e sua filha Eva Nil, junto ao de Humberto Mauro, eternizado como um dos mitos de cinematografia nacional. Ao lado desses, figuram com especial importância, os nomes daqueles que viabilizaram seu sonho, os empresários cataguasenses Homero Cortes Domingues e Agenor Cortes de Barros.
Este evento comemorativo, jogando um olhar sobre o acervo artístico de Cataguases e outro sobre a conjuntura econômica que lhe deu suporte, não pretende se esgotar nos planos da memória e da louvação estéril. Pretende, sim, apontar, a partir dessa observação, o caminho mais corajoso em direção ao que será moderno no século XXI.
Celina Albano
Secretária de Estado da Cultura 


CREDITOS - 1994. 

Prefeitura Municipal de Cataguases
Prefeito: Tarcísio Humberto Parreira Filho
Secretaria de Cultura Esportes e Turismo de Cataguases
Secretário: Doune Rezende Spindola
Encarregado de Cultura: José Luiz Batista.

Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais
Secretária: Celina Albano

Instituto de Arquitetos do Brasil
Presidente: Maria Elisa Baptista

Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural 13ª Coord. Reg.-MG
Coordenadora Regional: Cláudia Márcia Freire Lage

Exposição: "Cataguases, Um Olhar Sobre a Modernidade"
Projeto Museográfico: Paulo Rossi- SEC
Flávio Grillo- IBPC

Montagem da Exposição: Paulo Rossi- coordenador- SEC
Alencar Ferreira- FUMA
Cláudia Marinho- SEC
Fernando Silva- FUMA
Gisele Dias- FUMA
Tieres Tavares- FUMA

Montagem do Painel: Cristina Nunes- IEPHA
Jason Santa Rosa- IEPHA
Projeto Gráfico: Laboratório de Design Gráfico- ESAP/FUMA
Alencar Ferreira
Cleide Alves (Assessoria)
Fernando Silva
Paulo Rossi (supervisão técnica)
Composição e Fotolito: Espaço Alternativo Ltda.
Impressão: O Lutador
Coordenação Administrativa: Izabel Puntel Motta- SEC
Coordenação Financeira: Marília Rangel- IAB
Coordenação Geral: Antônio Fernando B. Santos- IBPC
Lídia Estanislau- IBPC
Assessoria: Márcia Maria C. de Oliveira- IBPC
Textos- Arquitetura: Selma Meio Miranda- Museu do Ouro/IBPC
Artes Plásticas: Cristina Ávila
Cinema: Paulo Augusto Gomes
Literatura: Patrícia Moran
Mobiliário: Anaildo Bernardo Baraçal- Museu da República/IBPC
Revisão: Lídia Avelar Estanislau

Fotografia: Daniel Mansur
Tibério Santos
Chico Batista (Laboratório)
Rômulo Fialdini- Repr. Do Painel- Tiradentes

Assessoria: Maria de Lourdes C. de Resende Neves- Assembléia
Legislativa

Vídeo: TV Minas

Agradecimentos Especiais: Deputado Tarcísio Henriques
Governo do Estado de São Paulo
Indústria Irmãos Peixoto
José Inácio Peixoto Filho
Maria das Dores Freire
Memorial da América Latina
Priscila Freire

Agradecimentos: Aos colecionadores
FUMA- Fundação Mineira de Arte
Bernadete Teixeira
Christino Teixeira dos Santos
Cristino Araújo Santos
João Guilherme C. Paiva
José Inácio Peixoto Neto
Manoel Macedo- Galeria de Arte

E a todos que tornaram possível a realização desta Exposição.