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As artes na pré-história:
algo mais que iconografia mágica.
Antônio de Paiva MOURA
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Por que e para que?
O interesse de estudo das artes na pré-história é muito amplo, uma vez que constituem rico material para os sociólogos na investigação dos fenômenos institucionais; para os antropólogos, na procura do ser humano a partir das bases de sua fenomenologia vital . Ao esteta e ao historiador da arte o que deve mais interessar é a busca das origens das artes e de seus possíveis significados.
Foi pensando na especificidade dos cursos de Artes Plásticas e de Educação Artística da Escola Guignard que resolvi escrever sobre artes na pré-história. Exatamente porque julgo ser uma boa oportunidade de levantarmos algumas questões, exercitar o nosso raciocínio e compreender o sentido estético das artes.
Compreende-se por pré-história o período que vai desde a origem do homem até a aparição dos primeiros escritos ou ideogramas. Divide-se em três períodos: Paleolítico ou pedra lascada, que tem início, aproximadamente, há 80 mil anos, caracterizando-se pelas atividades de caçador e pescador e a técnica de lascar toscamente a pedra para o fabrico de utensílios e armas. O período Mesolítico é o de transição entre o lascar e o polir a pedra. O Neolítico ou pedra polida ficou, mais ou menos há 10 mil anos de nossa era e caracteriza-se pela técnica do polimento da pedra, princípios da agricultura, domesticação dos animais e vegetais, desenvolvimento da cerâmica e vestígios do uso do cobre e do bronze.
De forma arbitrária, a palavra arte tem sido utilizada para qualificar quase todas as atividades humanas. Contudo, não é falso afirmar que tudo que o homem faz em sociedade é artificial. Os seus instintos são domados e submetidos ao complexo cultural de seu meio. O filhote de um cão, se atirado n'água no mesmo dia em que nasce, não se afogará porque tem condição instintiva de se defender nadando. O mesmo não acontecerá com uma criança: terá que passar por um processo de aprendizagem. O nado de uma criança é, portanto, um artifício. E quando o homem não é capaz ou não está disposto ao artifício de nadar ele usa o artefato (uma ponte ou um barco). O tigre caça com seus dentes e com suas garras naturais enquanto o homem usa o artefato (uma flecha, uma armadilha).
É exatamente isso que difere o homem dos outros animais. O homem é um animal artificioso e cultural, sujeito às leis da sociedade. Já os outros animais estão submetidos às leis da natureza.
Quando as coisas feitas e usadas pelos homens têm funções claras e objetivas, como o arco e a flecha, elas são chamadas de artefatos. Os painéis encontrados nas cavernas de Altamira na Espanha; em Lascaux, na França, representam animais dominados pelos caçadores, como o "Porco Flechado" no painel Oeste da Lapa de Cerca Grande, no município de Matosinhos em Minas Gerais, indica uma prática mágica de um povo caçador que ao representar a cena, acreditava exercer um domínio sobre o animal. Então, se na verdade tais pinturas são de caráter mágico e têm funções objetivas, elas não seriam obras de arte, mas artefatos ou artifícios utilizados pelos homens primitivos que habitaram aquelas regiões há mais de 9 mil anos.
Precisamos compreender que o enfoque econômico dos fenômenos artísticos não deve ser como uma doutrina onipotente explicativa da preponderância do fator econômico, mas que existe uma ação recíproca sobre a base da necessidade econômica que em última análise, que acaba sempre por prevalecer. Daí que o antropólogo, Marco Rubinger, é levado a afirmar: "Cada cultura tem sua esfera ideacional de pontos de comportamento, sincronizada com sua base econômica. É por isso que dizemos cultura de coletores de alimentos, de caçadores, de pastores, de agricultores, de mercadores, de industriais, mistas ou de transição".Se um povo coletor tem uma rudimentar concepção animista do mundo, um caçador já crê em um deus animal, enquanto que uma sociedade agrícola cultua deuses da fertilidade da terra. "(RUBINGER, M. M, 1979 p 29). Um outro dado importante é que, geralmente, os povos caçadores habitaram as cavernas enquanto os povos agrícolas habitavam os campos, as montanhas e as margens dos rios, apresentando um tipo de arte muito mais refinado.(RUBINGER, M M , 1979 p 38)
Se parássemos por aqui, a questão ficaria muito nebulosa. Na verdade ela servirá para aguçar a nossa vontade de excogitar o significado da arte.
Aristóteles encarava a arte como a ciência do possível, isto é, o que pode ser de um modo ou de outro, como a arquitetura, a poesia, a retórica, a medicina, as artes manuais ou mecânicas. Excluía a lógica, a analítica, a física e a matemática. Já na Idade Média são os trabalhos manuais que significam arte. Kant separou duas classes de arte: a primeira é a arte mecânica onde se cumprem somente as operações necessárias para realizá-la (artefato? artesanato?) . A Segunda é a arte estética onde o fim imediato é o sentimento de prazer. (Arte).
O fenômeno artístico só aparece dentro de condições propícias. Charles Lalo classificou as condições anestéticas e as condições estéticas da arte. As primeiras são os fatores domésticos, religiosos, econômicos e políticos. As segundas estão ligadas ao amor, às sensações e aos sentimentos. É difícil especificar ou separar as condições estéticas das anestéticas de um painel parietal pré-histórico, a exemplo de uma representação de sol (Tradição São Francisco) bem geometrizada, em círculos e raios de cores quentes. É difícil exatamente porque desconhecemos o momento histórico que o produziu. Esta tarefa torna-se fácil quando conhecemos em profundidade a vida social de um povo. Não sabemos nada mais dos povos primitivos que habitaram as Minas Gerais, senão aquilo que inferimos das obras por eles deixadas nas cavernas. Mas é assim mesmo: na era histórica partimos da organização social para conhecer a arte. Já na pré-história partimos da arte para compreender a sociedade.
Em minha adolescência tive um vizinho que era considerado por todos como louco ou deficiente moral. Certa vez fui ao cinema com os amigos. O vizinho nos acompanhou e assistiu ao filme que tinha como tema a Segunda Guerra Mundial. Terminada a projeção caminhamos pela cidade em animados comentários sobre a história da guerra e sobre o enredo do filme. Surpreendentemente o vizinho nos interrompeu dizendo que nunca mais iria ao cinema, pois era uma perda de tempo ficar ali duas horas com os olhos fixos na tela. A gente nada mais via senão sombra da fantasia. Para ele o teatro era uma pura fantasia e o cinema uma sombra desta. Por muito tempo fiquei a pensar sobre o meu vizinho: como uma pessoa que era capaz de um pensamento tão lógico, tão racional podia ser considerado um louco? Por outro lado ele devia ter uma "telha" a menos por ser tão duro, tão seco e não sentir necessidade da arte. Dois anos depois ele morreu, aos 22 anos de idade, caindo no esquecimento de sua família. O tempo foi passando até que um dia eu lia o livro "Cultura e Civilização" , de Câmara Cascudo , quando ele citou a seguinte frase de Menéndez y Pelayo : "Todo ombre tiene horas de niño, y desgraciado del que no los tenga." Minha primeira lembrança foi a do meu desgraçado vizinho. Compreendi, então, que ele havia sido escravo e vítima de uma lógica implacável. Incapaz de romper as algemas que prendiam o seu "Eu" e o impedia de voar. Incapaz, enfim, de compreender ou sentir a sua própria limitação.
Podemos aceitar ou negar a tese do caráter mágico da pintura do período paleolítico (REINACH, S, 1971 p 46). Mas não podemos afirmar que ela não seja artística. Embora extraída da realidade objetiva ela não é a realidade. É a representação imaginosa da realidade. Existiu um sentimento estético embora submetido a finalidades exteriores a ele. Isto é, a finalidades sociais. Será que a pintura que cobre as paredes dos apartamentos de hoje corresponde à finalidade puramente estética? Parece-me que a conquista de "status", muitas vezes, supera a finalidade estética de tais obras.
Quanto à pintura do Neolítico observa-se completa revolução estilística. Os pintores abandonaram o realismo figurativo do paleolítico em favor de uma simplificação e geometrização das imagens visuais. Aproveitam os símbolos e os signos. Usam as formas abstratas e abandonam o figurativismo realista.
E no Brasil?
Até 1951 não havia um livro de informação geral sobre as artes pré-históricas no Brasil. Existiam, sim, artigos publicados em revistas científicas especializadas que repousavam ociosamente nas estantes das bibliotecas. Registravam espaçadamente os casos curiosos observados por arqueólogos, antropólogos estrangeiros e estudiosos brasileiros. Em 1952 foi entregue ao público um extraordinário trabalho intitulado: "As artes plásticas no Brasil", coordenado por Rodrigo de Melo Franco Andrade. Reuniu em seu primeiro volume, as mais preciosas informações sobre o assunto. De lá para cá pouco temos a acrescentar, quer em termos de achados arqueológicos, quer em termos de análise sobre o material existente, embora possa ser registrado um interesse maior pelo assunto.
Pintura
Os registros de pinturas deixadas por sociedades primitivas (Paleolítico) formadas por caçadores são alguns os seguintes:
São Raimundo Nonato, PI, "Tradição Nordeste". Predominância das cores vermelho, amarelo, preto, branco e cinza. Tintas à base de minerais. Usavam pincéis de vegetais e com os próprios dedos. As cenas de caça focalizavam tatus sendo pegos a mão e a golpes de bastão, enquanto as onças eram atingidas com lanças para um ritual. As copas das árvores são representadas por ramagem simples e limpas, formando losangos e triângulos.
Não menos importantes são os painéis da "Tradição São Francisco" (Januária, São Francisco e Montalvânia), onde a geometrização chega a figuração humana em completa abstração, desaguando em uma codificação de complexa fruição . No que pese a complexidade das superposições, ainda se pode identificar com clareza uma roça de milho entremeada por animais.
Cerâmica
Segundo os estudiosos os povos com base na economia agrícola geralmente possuem arte cerâmica e escultura em pedra. Suas representações são modeladas, esculpidas, pintadas ou gravadas.(RUBINGER, M M, p 38).
O alto nível registrado na cerâmica do Norte do Brasil (marajoara e tapajônica) inspirou cientistas a estabelecerem relações entre os exemplares arqueológicos do norte e Sul da América. No que pese ao pouco material de que dispunha, o primeiro a estabelecer comparações entre a América Central e as da Amazônia foi Nordenskild (BARATA F. 1952 p 44). Contando com um vasto material, Helem Palmatary, da Universidade da Pensylvânia realizou o mais completo estudo tipológico da cerâmica. Em seus quinze anos de trabalho conseguiu estabelecer correlações e a existência de semelhanças ou identidades de certos traços das cerâmicas de Marajó e dos Tapajós com os da louça dos "mouds" do Sul dos Estados Unidos.(BARATA, F. 1952 p 44).
Da ilha de Marajó origina-se a cerâmica que se poderia denominar clássica, na arqueologia brasileira, caracterizada pela riqueza dos ornatos geométricos gravados (champlevê) ou pintados com admiráveis traços e perícia em suas urnas funerárias em ídolos e outros variados objetos.
A configuração cultural da ilha de Marajó é muito acidentada. Ocupada e reocupada por povos diversificados que modificaram constantemente o panorama da grande ilha. Cliford e Betty Evans denominaram pela ordem, os quatro segmentos como Anatuba, Mangueiras, Formiga e finalmente Marajoara. Além do material já mencionado os marajoaras usaram tangas de terra cota medindo, aproximadamente, 11 centímetros, de formato triangular, côncava e furos nas extremidades, para suspensão. Eram utilizadas pelas mulheres, no púbis, em rituais fúnebres. A decoração das tangas era feita com finas e graciosas incisões geométricas.(BARATA, F. 1952 p 46)
Caiapônia - Go. Predominância do vermelho. Raramente o preto, a base de minerais. Raras figuras humanas, mas acabadas, seguram crianças, usam porretes e enfrentam animais.
Cerca Grande, Matosinhos - MG. As pinturas, na parte Leste da Lapa estão há 12 metros do solo. Para alcançá-las é necessário atravessar uma longa, acidentada e escura galeria. Predomina a representação de veados. Em uma das janelas eles são distribuídos no espaço chapado, de uma galeria superior, completando uma forma piramidal. Isto é, os tamanhos das representações vão diminuindo na medida em que vão subindo e ocupando o espaço. O desenho do painel revela observação de movimento e suavidade nos contornos, coerentes com a anatomia do animal focalizado. A textura do primeiro veado da base do painel foi obtida através de linhas pontilhadas, no sentido horizontal. Quanto aos demais aplicaram o colorido pleno. Ainda nesta galeria encontramos peixes no sentido vertical. Na galeria Oeste encontramos uma série de pinturas de tamanhos reduzidos, mas todas de cenas de caças ou representações de animais, como um porco flechado. Os pigmentos utilizados eram à base de óxido de ferro abundante nas proximidades do sítio.
O abrigo de Santana do Riacho- MG- Prevalece a monocromática em figurações de veados. Verifica-se algumas superposições de figuras em vermelho. A textura do desenho é feita com aplicação de linhas pontilhadas horizontais e linhas contínuas. Os desenhos desta Lapa, comparados com os de Cerca Grande, apresentam movimentação mais intensa, com prejuízo da forma anatômica.
Passaremos agora a uma abordagem da pintura que mais ou menos corresponde a dos povos agricultores (neolítico).
As formas geométricas como circunferência, quadrado, retângulo e triângulo não são encontradas na natureza. Não correspondem a realidade vivida pelo homem pré-histórico. Por isso, quando o primitivo traça um perfil figurativo usando tais formas geométricas ele começa a chegar a um desenho abstrato. A figuração já exige do fruidor um esforço de interpretação, a exemplo dos painéis de Sete Cidades, no Piauí, onde o realismo mágico cedeu lugar a simplificação e à geometrização das imagens. Em São Raimundo Nonato, PI, na Toca do Salitre encontra-se a figuração de um casal em que o desenho do homem é elaborado a partir de planos retangulares e triangulares. A mulher aparece bem menor que o homem, representada por três blocos geométricos formados pelos membros superiores, abdômen de gestante e membros inferiores. Ainda em São Raimundo Nonato, na Toca da Extrema, homens em volta de uma árvore, formam um curioso painel. Houve uma nítida intenção de organizar o espaço ao ordenar as pessoas em filas harmônicas.
Santarém, centro das explorações arqueológicas da cultura tapajó, localiza-se nas proximidades do encontro do rio Tapajós com o Rio Amazonas. Ninuendaju faz referências desse povo que chegou a defrontar-se com os espanhóis expulsando Orelana em 1542. Em 1630 expulsaram também uma nau inglesa matando os homens que desejavam estabelecer uma plantação de tabaco na região. Mas não pode resistir à aventura portuguesa que os destruiu.(NINUENDAJU, C. 1949) Este povo agricultor fixo em solo fértil, domesticou animais e substituiu as cabaças por vasilhame de argila moldadas nas formas práticas para usos definidos. A cerâmica de Santarém , como é conhecida, é algo mais que um simples aparelho utilitário ou funcional. A graciosidade da composição ultrapassa os limites dos recipientes. Caracteriza-se pela elaborada modelagem de pássaros, animais e figuras humanas, combinada com incisões e ponteados, fixadas ao vaso. O excesso de ornatos em relevo confere à cerâmica um ar de aguçada sensibilidade. Não é uma expressão puramente artística, mas não deixa de revelar uma mensagem altamente estética.
Escultura
Segundo André Prous, no Brasil, muito pouco foi encontrado até hoje em termos de escultura pré-histórica e que as mais bem elaboradas são originárias da região onde predominavam as culturas tapajó e trombetas. (PROUS, A 1984, p 71).
O estudioso Barbosa Rodrigues, em obra publicada em 1899, pensava que os Muiraquitãs eram estatuetas feitas de jade procedentes da Ásia, com os primeiros elementos humanos que povoaram a América (BARBOSA RODRIGUES, J, 1899). Com o tempo a arqueologia descobriu que os Muiraquitãs foram produzidos pelos pré-colombianos da região dos rios Tapajós e Trombetas, com mineral de ótima plasticidade, como esteatita, ardósia, arenito e serpentina. Representam figuras de animais estilizados em linhas geométricas e harmoniosas. Apresentam orifícios paralelos indicando uma utilização prática. Compreende-se por Sambaquis os depósitos constituídos de montões de conchas, restos de cozinha e de esqueletos acumulados por homens pré-históricos, na região sul do Brasil. Enquanto os motivos da escultura tapajó eram animais próprios da hiléia amazônica, os povos dos Sambaquis projetavam os peixes e as aves que eram os complementos de sua alimentação à base de horticultura. O apuro técnico a que chegaram, em alguns exemplares da escultura em pedra, mostram um extraordinário domínio da forma que perseguiram. Era evidente a intenção da delicadeza e da harmonia das linhas quer nas incisões quer nas excisões.
B I B L I O G R A FI A
1- RUBINGER, Marcos Magalhães - "Pintura rupestre: algo mais que arte pré-histórica" -Belo Horizonte- Interlivros-1979 pág.29.
2- RUBINGER, Marcos Magalhães-op.cit.Pág.38.
3- REINACH, S. - "L'art et la magie", L'Antropologi - In: Bastide Roger - "Arte e Sociedade " - São Paulo- Cia. Editora Nacional -1971-pág.46
4- RUBINGER, Marcos Magalhães - op.cit.Pág.38
5- BARATA Frederico - "Arqueologia" - In: As artes plásticas no Brasil "- Rio de Janeiro- Banco Hipotecário Lar Brasileiro -1952- págs. 44
6- BARATA, Frederico - op. cit. Págs. 44/46.
7- BARATA, Frederico- Po .cit.
8- NINUENDAJU, Curt - "Os Tapajós" - In: Boletim do Museu Paraense.
"Emílio Goeldi", tomo X, Belém, 1949.
9- PROUS, André - "Os artistas da pedra" - In: "Herança" - São Paulo- Dow-1984 -pág.71.
10- BARBOSA RODRIGUES, J. - "O Muyrakitã e os ídolos symbólicos" - Rio de Janeiro - Imprensa Nacional - 1899. (citado por Frederico Barata).
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