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CARTA PARA CARLOS
Carlos,

Pedi poesia, ainda... Lembro-me bem que sublinhei a palavra ainda. Um traço apenas e tanta evocação pretendida, aí onde se oferece o inevitável! Um traço oferecido à decifração. Lembro-me de que me surpreendi ao fazer o traço e quis trocar o papel. Pressionada pela vontade de lhe remeter, não o fiz: tenho uma simpatia muito grande pela pressa neste aspecto em que ela não se presta ao retoque (o ato está cometido e um pouco de mim, estouvadamente, aí se presenfica).

O ainda destacado - pude perceber em seguida - portava a referência à música que me acompanhava até aquela ocasião. Para mim sempre soava melancolia a poesia que me levava a banhar na tristeza do Tejo, a viajar rotas interditas, estradas wenderianas que vão ao expatriamento (agora tão próximo!) ao retorno às minhas origens. Wim Wenders, sempre. Anos atrás, em minha análise pessoal, eu era o roteirista mas as asas que eu usava eram as de seu anjo Daniel (Asas do Desejo).

Por fim, impregnada de Madre Deus, recusava a contingência de não lhe entregar o Espírito da Paz, a você destinado no ato da compra.

Mais... ainda oferece, por outro lado, a idéia, a marcação temporal onde sons, imagens, cheiros se fundem, renovam e repetem. Ainda remete à insistência e possibilidade ainda era você.

E, então, você responde a meu pedido com o mais belo poema, travestido (como se pudesse!) em carta. Fosse eu mística, estaria afirmando a existência de misteriosa força conjuntural; fosse eu religiosa estaria afirmando a existência de Deus; fosse eu doida estaria afirmando a certeza dos fatos.

Sou desejante e aguardava, com pudor, a realização deste desejo. Soube o exato momento em que chegou seu poema, por esta magia que é o pensamento: quando a espera cessa, concluímos que era este o momento. Já esperava há mil anos!

Pura mentira eu afirmar não ter lido a despedida. Também já a sabia melhor que a ruptura, surgida a partir do penúltimo telefonema, tão bem resgatado por você. Pode avaliar o hediondo de uma ruptura - puro fosso entre duas pessoas? Não passei por esta experiência, ainda!

Faço aposta - sempre! Na possibilidade; na finalização se for o caso, prefiro o tropeço da palavra ao buraco sem palavras (diferente do silêncio)

Telefonemas meus e a poesia sem nome para que insistir?

Para dizer coisas muito despretensiosas, divertidas, idiotas mesmas...

Um exemplo?

Pode confirmar para mim (disseram que é o único que poderá fazê-lo) onde encontraria um artesão da palavra que atende pelo nome de Carlos Serranegra?

Sabe você que um poema dele é como a Festa de Babete; a Nona Sinfonia em Laranja Mecânica; o anticatolicismo em Woody Allen; Marlon Brando em Um bonde chamado desejo e...?

Que sei dele? Pouco. Não; o suficiente para pensar que ele não sabe que o anjo Daniel de Wenders saiu de uma expectação da vida para ingressar no aqui-agora do humano, com toda dor que isto acarreta pois o desejo é isto mesmo, não pomos a mão nele, nunca! Com a mão, só tocamos o outro, já não mais pressentido, agora pura presença a nos indicar que nosso desejo é também (às vezes, sobretudo) o desejo do Outro!

Que mais sei deste poeta? Não muita coisa. Desconfio, no entanto, que ele não percebe a dimensão de seu fascínio; que el não se dá conta que a "história é o objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de "agoras". (Benjamin, Sobre o conceito de História)

Que mais? Não sei.

Então você confirma para mim que eu encontraria este Cirano de Bergerac moderno (quem resiste aos versos alexandrinos?) numa Sexta-feira (bobagem, qualquer dia) às 20:30 horas (em que relógio?) no lugar que ele mais gosta? Só você pode confirmar.

O que vai acontecer, se eu o encontro? Não tenho a menor idéia, nem preciso. Arrisco. Quem sabe apostamos na amizade?

"Quem avança, guarda o amor, guarda a esperança, sem favor. Ainda, ainda, ainda" (Pedro Ayres Magalhães - Madre Deus. Disco ainda)

Saudades,
Maria Lira
22/08/1996
Recebi seu poema ontem. Quis agradecer. Você tinha gelo na cabeça. Sorry...